Ninfas, deuses e outras figuras lendárias podem encruzilhar-se com a Medicina? Podem. Na Medicina do Sono algumas entidades patológicas foram beber nestes enredos, para hoje explicar alguns sintomas e/ou patologias que acabam por entrelaçar exemplos destas figuras míticas e mágicas. Afinal os Deuses não devem estar loucos

Ao longo dos séculos, a mitologia e a medicina têm vindo a entrecruzar-se, criando histórias, com mais ou menos encantamento… Algumas narrativas vão-se modificando ao longo dos tempos, dependendo do contador, mas os enredos e os elos de ligação são vários, tocando muitas áreas específicas da medicina. Conheça algumas histórias em que a mitologia e a medicina do sono se entrelaçam.

Quem era Ondine?

Por acaso, já ouviu falar de uma ninfa, figura mítica de seu nome Ondine? E na entidade médica denominada de síndrome de hipoventilação central congénita? Pois bem, tem sido atribuída a designação de síndrome de Ondine à síndrome de hipoventilação central congénita, por existirem semelhanças entre a doença e a lenda da ninfa Ondine. E porquê? Explicamos melhor:

Ondine era uma ninfa, figura mítica das águas, da mitologia germânica e filha do rei Poseidon. De notável beleza, a sua imortalidade perder-se-ia se se apaixonasse por um ser humano e dele tivesse um filho. Quis o acaso que tivesse caído de amores por um cavaleiro que lhe fez uma jura de amor e fidelidade representada por cada ciclo respiratório que consumasse – “My every waking breath shall be my pledge of love and faithfulness to you”. Tempo depois do enlace, de terem vivido felizes e tido um filho, o mancebo traiu Ondine e a promessa virou-se contra si, com a vingança que tinha sido ditada – para respirar, teria que estar acordado e mal adormecesse deixaria de respirar, o que o levaria à morte: “You pledged faithfulness to me with your every waking breath, and I accepted that pledge; so be it; for as long as you are awake, you shall breathe, but should you ever fall asleep, your breathing shall cease”. E o mancebo acabou por morrer, porque não conseguia estar permanentemente acordado e quando adormeceu a sua respiração extinguiu-se.

Esta lenda, aqui muito resumida, tem sido ao longo dos séculos tema para novelas, poemas, peças de teatro, piano e ballet, óperas, pinturas, esculturas, filmes e teatro musicais. Hans Christian Andersen terá mesmo sido influenciado pela lenda no seu conto “A Pequena Sereia”.

E como se entrecruza esta lenda com a Medicina?

O ato da respiração do ser humano está dependente de dois controlos – um voluntário e outro automático. Quando estamos acordados, estão os dois em funcionamento. Quando adormecemos apenas funciona o controlo automático, pelo que, se existe um problema no seu desempenho e a pessoa está a dormir, a respiração não se faz, precisando sempre de ajuda exterior, sob pena de se entrar em paragem respiratória e vir a falecer. Isto é o que acontece em geral nas pessoas que têm uma síndrome de hipoventilação central congénita (SHCC) e que assim necessitam de apoio para respirar – um ventilador e/ou um pacemaker respiratório – pelo menos durante o sono. 

A semelhança desta situação clínica com o que aconteceu ao amado da Ondine justificou o epónimo de maldição de Ondine ou mais simplesmente síndrome de Ondine.  

A SHCC ocorre muito raramente. Calcula-se que apenas 1 em cada 200.000 crianças nascidas vivas apresentem esta doença, havendo menos de 1500 casos descritos a nível mundial.

O que fez Penélope?

A Odisseia, um dos poemas da mitologia grega, conta-nos a história de Penélope e Ulisses. Ulisses partiu para Guerra de Troia e por lá ficou cerca de 20 anos sem dar notícias à sua amada esposa, que o esperava dia após dia honrando a sua fidelidade conjugal.

Com o decorrer do tempo, o pai de Penélope começou a instá-la para que voltasse a casar, ao que ela sub-repticiamente, se empenhava em resistir. Procurada por inúmeros pretendentes, a estratégia encontrada por Penélope, para se furtar a um novo enlace, passava por afirmar que assumiria o compromisso de casar com um novo pretendente, quando terminasse o sudário que estava a tecer para o pai de Ulisses. Durante o dia afadigava-se a tecer a peça, mas … pela calada da noite, desmanchava o que tinha feito durante o dia. E conseguia assim ir retardando a conclusão da obra. 

À semelhança do que fazia Penélope, também no cérebro de determinadas crianças portadoras de uma encefalopatia com status epilético durante o sono, também denominada de síndrome de Landau- Kleffner, pode acontecer que o que é aprendido durante o dia, seja esquecido durante a noite, por conta das crises epiléticas que ocorrem durante o sono lento. Por esta razão, esta situação, que é muito rara, é denominada de síndrome de Penélope. 

O que aconteceu a Elpenor?

Voltando de novo à empolgante viagem de Ulisses, Homero descreve na Odisseia o seu longo e acidentado regresso desde Troia até Ítaca, na companhia dos seus camaradas. Durante a viagem por mar, Ulisses visitou a ilha de Eana, onde uma famosa feiticeira – Circe – tinha poderes para transformar seres humanos em lobos, leões ou suínos. 

Ulisses viveu com a feiticeira durante algum tempo até que decidiu partir de novo com a sua comitiva. Um dos seus camaradas, o jovem Elpenor, algo embriagado, tinha resolvido ir dormir para o telhado do palácio de Circe. Na agitação da partida, Elpenor levantou-se subitamente no meio do sono e, desorientado, caiu do telhado tendo o infeliz uma morte imediata.

Um acordar incompleto de um sono profundo, que ocorreu na sequência de uma ingestão excessiva de bebidas alcoólicas ou de medicamentos hipnóticos, ou até de um adormecimento num local estranho, pode levar a um estado de desorientação com comportamentos automáticos, que podem colocar a vida da pessoa ou de outras em risco. 

Existe alguma sobreposição desta situação com o despertar confusional e com o sonambulismo. O despertar confusional é um episódio noturno de curta duração, que se caracteriza por desorientação, confusão e por vezes alguma agitação na transição da fase de sono lento para o acordar e, habitualmente, sem saída da cama. O sonambulismo também se inicia durante uma superficialização do sono lento e termina com a saída da cama num estado de inconsciência. 

Estes eventos são habitualmente benignos e, enquanto o despertar confusional ocorre nos primeiros anos de vida, o sonambulismo é mais característico da idade escolar, até por volta dos 12 anos. Em qualquer das situações, a criança não retém memória do acontecimento.

Efetivamente designa-se por síndrome de Elpenor quando o episódio assume uma maior gravidade e se relaciona com uma situação de risco, como uma queda, um acidente, uma agressão e que, por vezes, até pode colocar problemas médico-legais, situação que é mais frequente em adultos e adolescentes. 

Na literatura médica são frequentes as situações médicas relacionadas com figuras lendárias, do folclore e da mitologia grega ou romana. As narrativas relacionadas com as figuras podem ir sofrendo algumas variações, mas não deixam de emprestar um toque de magia às histórias e de estimular a imaginação na arte de fazer Medicina nas suas várias áreas e, por outro lado, facilitar a compreensão de determinadas doenças, nomeadamente do sono.

Maria Helena Estêvão
(Médica Pediatra, com competência em Medicina do Sono)

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