Desconfinar não é igual para todos, tal como, na vida selvagem, a água dos charcos não é igual para presas e predadores. Há um ciclo da vida de resposta ao medo, bem entranhado no cérebro humano e há prioridades e dilemas impostos a quem não tem possibilidade de escolha
Os micróbios – que mataram milhões de pessoas e reduziram a população mundial a 350 milhões, na Idade Média – foram identificados há pouco mais de um século e o conhecimento pleno da sua importância, na eclosão e transmissão de inúmeras doenças infeciosas, só aconteceu no fim do século XIX. Foi nessa época que se descobriu o RX e se iniciou a moderna anestesia, mas também a vacinação, como forma de prevenção das doenças infeciosas. O primeiro antibiótico só foi descoberto na segunda década do século XX e a grande viragem na evolução das infeções só começou a partir desse período, numa altura em que se travava o combate efetivo da tuberculose, cujo bacilo, responsável pela doença, levou o nome de Koch, médico patologista alemão, Nobel da Medicina pelo trabalho de identificação dos micróbios.
Há pouco mais de um século, o conhecimento médico deu um salto revolucionário mas, ainda hoje, a tuberculose, conhecida como doença mortal, desde há nove mil anos, continua prevalente, sobretudo em África, e a malária continua a constituir uma das primeiras causas de morte em todo o mundo…
Atualmente, o combate aos vírus entrou numa fase que ainda está longe de igualar o combate à maioria das bactérias, mas a expansão do conhecimento já circula tanto ou mais rápida que as mutações e, nos países desenvolvidos, ou em desenvolvimento, as calamidades resumem-se, de uma forma geral, a um período mais curto, permitindo que a população se reequipe e utilize meios de proteção individual, por vezes tanto ou mais efetivos que os fármacos.
O ar, os alimentos e o contacto direto dos corpos são hoje bem conhecidos como veículos de transmissão de doenças, tal como estamos todos bem conscientes que os micróbios invisíveis invadem, sem pedir licença, os nossos familiares, os nossos amigos e os nossos vizinhos. Não permitir que isso aconteça é, para além de um cuidado de proteção individual, um ato cívico de proteção do próximo.
Ultrapassada a primeira fase da nova pandemia, abre-se o leque de prioridades e dilemas, onde os fatores sociais e o estado de saúde prévio têm um valor e um peso maior que a pandemia.
A diferença entre o comportamento de um doente debilitado por patologia crónica, infeciosa, degenerativa ou oncológica, e um adulto bem instalado na vida, saudável, com emprego garantido, sem qualquer limitação das necessidades básicas, é abismal. Enquanto os primeiros têm um medo inimaginável da nova agressão, pelo simples facto de ser cumulativa com a situação prévia, já de si invalidante, os segundos têm apenas de tomar os cuidados necessários para evitar qualquer contágio, e aguardar, sem pressas, que as coisas normalizem. Nem medo da doença, nem medo da fome, nem tão pouco de perder a sua fonte de trabalho. Este é o grupo que deve retomar a atividade tão breve quanto possível, sem pisar o vizinho, e consciente de que a norma é a salvaguarda da saúde dos outros e da sua própria.
No doente com patologia crónica, em período pandémico, a prioridade será a retoma da atividade anterior, com aumento das defesas e cuidado acrescido no convívio social. Desconfinar com maior segurança, assumindo a convivência com o vírus, por muito tempo ainda, não podendo a patologia crónica ser arrumada numa gaveta. As consultas, os exames, ou os tratamentos em curso não podem ser ignorados, e as observações programadas, antes da pandemia, são tão importantes como a prevenção da infeção por Covid-19. Neste grupo, desconfinar em segurança, exige olhar a doença crónica como prioritária, quando ela, só por si põe em risco a vida do doente.
Um terceiro grupo é o daqueles, que ao longo dos séculos, os deuses não conseguiram ou nunca se interessaram em propiciar um trabalho digno, um emprego estável, o pão na mesa, ou um tecto para se abrigarem. Enfrentar esta, ou qualquer outra pandemia, com a mesma calma e segurança que qualquer funcionário público, com o emprego à espera depois do desconfinamento e com as batatas na despensa e a carne no fumeiro, essa calma evidentemente não pode ter longa vida e a retoma do que supostamente devia ser normal, continua a ter o dedo não piedoso dos deuses.
E agora sim, as prioridades que apresentam estados conscientes de escolha, entre coisas possíveis, têm travões, que não são mais do que dilemas impostos, sobretudo àqueles que não têm grande possibilidade de escolha. Os médicos e enfermeiros do Sistema Nacional de Saúde arriscam, diariamente, a sua saúde para salvar a vida dos doentes, mas podem estabelecer prioridades, sem risco de perder o pão, o teto e o emprego.
Desconfinar não é igual para todos. Como a água dos charcos, na vida selvagem, não é igual para presas e predadores. E as presas têm de arriscar para matar a sede. E arriscar pode ser expor a vida por alguma água. Este é o ciclo da vida dos que lutam sempre como resposta ao medo. Resposta possível, bem entranhada no cérebro humano e preservada ao longo dos séculos. Como possível é a fuga ou a imobilidade por tudo o que assusta. E, neste grupo, particularmente vulnerável, a luta, na zona de risco, é a melhor forma de sobrevivência. Nunca perdemos completamente os nossos medos, mas devemos lutar por ser inteligentes, honestos e amáveis.
Da mesma forma brusca, quase violenta, com que se modificaram hábitos, em reação a uma molécula invisível, que espalhou o pânico numa sociedade mal preparada para confrontos; também se desencadeou, de uma forma global, uma resposta imediata de defesa e ataque ao inimigo público. A defesa incidiu em formas simples de empenhamento individual e de grupo, incluindo o respeito do próximo e a salvaguarda dos direitos básicos de saúde e de circulação. Bem longe e bem diferente das pandemias na época em que havia pouco conhecimento e, quando existia, não circulava em tempo real.
O amanhã é sempre um passo à frente daquilo que fazemos hoje. Keep the best and change the rest. (Fica com o melhor e muda o resto)
Raimundo Fernandes
(Médico Neurocirurgião)
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