Crónicas de vida, de um médico… — “A cavalo dado, não se olha o dente”

Os defeitos e os direitos andam muitas vezes de braço dado e a implantação de aparelhos auditivos nem sempre passa no crivo da exigência ou da perfeição…

– Doente seguinte, D. Célia! – Exclamei para o corredor vazio, enquanto ainda se arrojava a tremelicar, de bengala na mão, o idoso que saía amparado na esposa.

Naquela manhã tinha permitido que me acrescentassem mais uma dúzia de idosos surdos à minha agenda. Tinha chegado um lote de aparelhos auditivos, que precisavam “sair da gaveta e passar prás orelhas moucas”, como dizia o meu antigo chefe. Com anos de espera, sujeitos à lotaria dos ciclos burocráticos, entendia a aplicação dos aparelhos auditivos nos idosos como um imperativo humanitário justificativo de mais uma manhã acelerada.

Entrou o doente seguinte.

Ainda em passo incerto, a arrastar os pés, enquanto procura a cadeira de observação com o olhar, dispara imediatamente:

– Espero que estes não sejam a pilhas, como os últimos que levei: fartei-me de gastar dinheiro em pilhas!

– Tem de ser com bateria recarregável!…

Balbuciei um “Faça o favor de se sentar…” e continuava:

– E também não quero um aparelho muito grande, com os óculos não pode ser!

– Pois… – gaguejava eu – já vamos ver. Sabe, o Hospital faz um concurso público e depois escolhe aparelhos que tenham uma boa relação da qualidade e preço … – mas não me deixava terminar, sufocado pela indignação, continuava irrefreável a elencar defeitos e direitos a torto e a direito.

Olhei o computador: 78 anos, uma surdez severa.

Eu já não tentava responder, porque o ancião continuava incontinente, numa verborreia belicosa e estridente.

Por fim, ouvidos limpos, aparelho testado, cheguei-me para trás na cadeira, e bem na frente do homem, tentei que ele entendesse pela leitura labial:

– Sabe, amigo, dizia a minha avozinha que “a cavalo dado, não se olha o dente!”

Virei a cadeira giratória na direção da porta, apontei a saída e ainda o ouvi vociferar para a operacional que o amparava corredor fora:

– Quem é que me passa a credencial de transporte?

Luís Filipe Silva
(Médico, Otorrinolaringologista)