Quando o acompanhante fala demais dentro de uma consulta, muita coisa pode acontecer…Mas um olho no céu-da-boca às 3 horas da manhã desencadeia muitas dúvidas e questões
1. Consulta médica atribulada
Olhei o relógio: mais de meia hora de atraso!
Entraram os três num repente:
– Senhor doutor, o meu marido também pode entrar?
– Claro pode entrar quem a senhora quiser!
Todos baixinhos e roliços, a senhora à frente com um andar resoluto, depois pai e filho, réplicas quase perfeitas, com pequenas diferenças no tamanho e num boné que o miúdo empinava no cimo do crânio de cabelo à escovinha, como o do pai.
Exiguidade de assentos, “a epidemia, compreendem?” – a senhora sentou-se na cadeira de observação e os familiares no canto do consultório, fora do meu campo de visão, absolutamente em silêncio.
Foquei a atenção na doente:
– Então de que se queixa?
– É aqui o meu nariz… que não funciona! Sempre entupido. E então de noite: é um tormento, só respiro pela boca…
– E dores de cabeça? – Pergunto.
– Ah! Isso é raro… só às vezes!
– Mentirosa! Estás sempre a queixar-te da cabeça!… – Ouve-se do fundo da sala, o miúdo até aí silencioso como uma rocha.
– Cala-te! Deixa falar a tua mãe – vocifera o pai de voz alterada.
– Então e tosse? É frequente? – Continuo
– Não, só quando me constipo… – responde a senhora.
– Mentirosa! Passas a vida a tossir! – Interrompe a voz juvenil atrás de mim.
Ouvi o som de uma pancada breve e abafada mas não me virei, continuei o interrogatório. Dei conta que algo se passava nas minhas costas pelo ar alarmado da mãe que esbugalhava os olhos na direção dos familiares. Virei-me.
O rapaz tentava em vão estancar um fio de sangue que lhe brotava do nariz com um lenço de pano que segurava contra a cara. As manchas vermelhas na camisa e a poça de sangue no chão testemunhavam a intensidade da hemorragia. O pai mantinha-se impávido e sereno, carrancudo, não se mexia.
Levantei-me apressado e levei o rapaz pro lavatório no canto do consultório.
– Ó menina Rosa ajude aqui! – Clamei para a empregada que apareceu assustada.
Tamponei o nariz do rapaz, acabei a consulta da mãe. O pai saiu sem uma palavra.
Já ia com uma hora de atraso!
2. Um olho no céu-da-boca
– Estás de Urgência?! – Perguntou-me a mulher ensonada sobre o zumbido irritante do telemóvel pousado na mesa-de-cabeceira.
Ainda com o pensamento dormente de um sonho inquieto que confundia a realidade, olhei os números do relógio digital que brilhavam no escuro, 3:20H.
– Estou! – Murmurei contrariado enquanto esticava o braço com esforço à procura do telemóvel.
– Sr. Doutor, tem aqui uma criança com um olho no céu-da-boca! – Disparou categórica a enfermeira do outro lado da linha.
– Um olho no céu-da-boca? – Repeti eu, vacilante, ainda a tentar racionalizar o que estava a acontecer.
– Sim! Temos o pedido de colaboração da pediatra há 15 minutos – e desligou.
Era Carnaval, a tradição mandava que os especialistas mais novos tinham de “malhar na escala” nestas datas propícias a pontes e pedidos de férias pelos ”mais velhos”. Eu tinha chegado dos Fuzileiros (serviço militar obrigatório) há pouco tempo e não tinha remição, as urgências sucediam-se, de presença física ou de prevenção. Na prevenção noturna sempre podia dormir em casa, mas tinha 45 minutos para “me apresentar”.
Saltei da cama, maquinalmente, despi o pijama e vesti a camisa e as calças estrategicamente deixadas nas costas duma cadeira.
– Já volto – murmurei à mulher, que já se tinha voltado na cama e dormia tranquila.
Peguei nas chaves do carro e num casaco antes de sair para a noite fria e ventosa.
Ao volante assaltou-me a intimação da enfermeira: “Um olho no céu-da-boca!”
Pensei em telefonar para a Urgência, tentar esclarecer o enigma que não conseguia compreender, e assim poderia contactar o outro colega de serviço ao HUC, mas com certeza a ligação iria demorar uma eternidade, e era Carnaval!
O mais provável era que estivessem a pregar-me uma partida. Aquela gente da Urgência do Hospital Pediátrico é pessoal muito sujeito a stresses violentíssimos e com certeza estavam a pôr o jovem especialista de ORL à prova! Não havia de ser nada.
Cheguei.
À porta do gabinete de urgência de ORL estava uma mãe com uma menina de 2 ou 3 anos ao colo.
– Então o que aconteceu? – Perguntei enquanto colocava o foco de luz na testa. A mãe hesitou…
– Abre a boca, pequerrucha… – atirei com uma espátula na mão direita. Foquei a luz e… lá estava: um grande olho azul, fixo a olhar para mim no céu-da-boca da menina!
– Era do urso de peluche, ela trincou e arrancou-o com uma dentada. Não se queixa, se estiver quieta, mas não come, nem deixa mexer!… – Balbuciou a mãe num fôlego.
Ainda tentei com uma pinça. A menina nem deixava tocar.
Foi ao bloco operatório e levou 3 pontos. A mola metálica do olho do urso de peluche tinha-se encravado na articulação entre os ossos do palato ósseo.
Pelas 5:30H tinha vestido de novo o pijama, deitei-me com mil cuidados para não acordar a mulher.
– Então? Correu bem? – Perguntou ela.
– Correu. Dorme. Está tudo bem.
Adormeci imediatamente. Mas pelas 8:00H já estava a olhar outra vez para os ponteiros luminosos. Acabava o turno. E não tinha sido chamado mais nenhuma vez. Que sorte!
Luís Filipe Silva
(Médico, Otorrinolaringologista)
Meu médico preferido desde Gouveia ( ainda com dona Arlete). Adorei os seus contos, podia escrever um livro. Deve ter muitas mais estórias para contar.
ReplyDespeço-me respeitosamente e até qualquer dia senhor doutor.
Pois só confio em si para ver a minha garganta.