É dentro de uma espécie de condomínio fechado, que um circuito com ligações internas bem organizadas e tentáculos bem distribuídos, regista tudo o que vai acontecendo ao longo da nossa vida. Uma “ameixa” e um “cavalo-marinho” são os amigos improváveis de uma teia de memórias que começa a ser construída ainda na vida uterina


Para falarmos de um problema tão complexo como a memória temos de dar alguma informação científica, por mínima que seja, para ser possível compreender a forma e o local onde se elabora, como se armazena, como se tira do armazém quando é necessária, como se perde e qual o seu verdadeiro valor.

O registo do que vai ocorrendo desde a vida uterina constitui o mais sagrado papiro, onde se aponta cada momento, escrito por células invisíveis, que trabalham sem folgas, dias santos e feriados, e mesmo durante o período em que dormimos.

A central ocupa um espaço privilegiado dentro do crânio: alimentada por bombas que levam o sangue suficiente para manter bem alimentadas as células cerebrais, cujos prolongamentos, se fossem esticados, teriam um comprimento de 160.000 quilómetros – quatro voltas à Terra – sendo que as mais importantes – os neurónios – pequenos minicomputadores – contam-se de 10 a 40.000 milhões. E, neste pequeno volume de 1500 cc, onde há diferentes células, acorrem diariamente cerca de 1.800 litros de sangue e 70 garrafas de 30 litros de oxigénio. Desde o nascimento, morrem diariamente neurónios não utilizados, a uma média de 75 a 100.000 por dia a partir de determinada idade.

É um alívio saber que, no fim da nossa vida, temos mais de metade dos neurónios com que fomos brindados, o suficiente para afirmar, sem margem para dúvida que, aos 70 anos, podemos ter quase tantos neurónios como aos 20 de idade. Isto quanto a neurónios, porque quanto a factos a recordar, o armazém está bem mais cheio de informação. Por todo o organismo há células indiferenciadas, como emigrantes que fazem qualquer serviço que apareça, e células especializadas, com funções específicas, tal qual formigas num formigueiro, onde as guerreiras têm como função exclusiva defender o seu habitat dos inimigos externos.

Cada neurónio estabelece um contacto com milhares de outras células – sinapses – de tal ordem que se atingem triliões de conexões. É esta conversa intercelular que nos permite, entre outras coisas, que os objetos tenham uma representação tridimensional no córtex occipital; que os sons que entram pelos pavilhões auriculares sejam descodificados, a nível do córtex temporal; ou quando o aroma do peixe grelhado entra pelas narinas, seja sentido como tipicamente português no lobo temporal; mas também a posição que o nosso corpo ocupa no espaço seja percecionada, mesmo com os olhos fechados, no lobo parietal. São ainda estas mesmas células especializadas do tronco cerebral que permitem o meu estado de vigília alternado com sono.

Entende-se assim que a diferentes áreas do cérebro podem corresponder diferentes funções – por exemplo, córtex frontal e temporal esquerdo para a linguagem – e as lesões várias, tumores, traumatismos, acidentes vasculares, etc, que interrompem o trabalho celular normal, conduzem à perda da função temporária ou definitiva na área envolvida.

Os neurónios, envolvidos nos mecanismos da memória são, por um lado, diversificados e, por outro, dispersos por áreas não tão bem delimitadas, como no caso da linguagem. Identifiquemos primeiro o registo e armazenamento do objeto em causa, seja de forma visual, auditiva, táctil ou outra. E só depois perceberemos algumas das razões porque as memórias de curta e longa duração podem ser tão seriamente afetadas.

Na parte central e inferior do cérebro, de um e outro lado do tronco cerebral, há uma espécie de condomínio fechado, como um circuito de ligações internas muito bem organizado e tentáculos para o córtex frontal e temporal envolvente, tronco cerebral, cerebelo e sistema endócrino. Nesta área, a mais antiga do cérebro, chamada área límbica, destacam-se duas estruturas, a amígdala com a forma de uma ameixa e o hipocampo com a forma de um cavalo-marinho e que têm um papel central nas emoções e na memória.

Vamos tomar com exemplo uma caçada noturna em África, em que o caçador utiliza uma luz frontal para fixar os olhos da presa, tomando como experiência relatada que os olhos das gazelas são azuis, os do leopardo são avermelhados e os dos leões são amarelos. Em plena floresta, onde ouço apenas o pisar das folhas, batimentos cardíacos a galope, um medo canino a retesar os músculos, há uma máxima concentração no foco de luz. As duas ameixas cerebrais, cujas células estão ao rubro, codificam cada imagem visual e auditiva ao pormenor, transmitindo-as ao cavalo-marinho e ao sistema endócrino que liberta hormonas de stress, ativando em seguida o córtex cerebral que vai, dentro de momentos, racionalizar o medo crescente e armazenar a memória de longa duração. De repente, a cerca de 80 metros, dois volumosos olhos amarelos, inexpressivos, a zona límbica tingida de amarelo fogo, a tensão arterial a subir aos 200 mmHg, os intestinos a entrarem num alvoroço, suores profusos e a estocada final, após um urro que saía mesmo debaixo dos pés. Imobilidade total e cérebro vazio.

As células da amígdala, transidas de medo, transmitiram numa conversa apressada uma imagem ao hipocampo e ao córtex frontal, que perdurou por décadas. Neste momento, um urro de leão no jardim zoológico faz reviver a memória de longa duração, naquela noite em Moçambique. A imagem foi codificada, armazenada e processada de forma emocional e consciente.

Apesar de algumas dúvidas, que continuam a persistir sobre a forma e os locais onde esta primordial função cognitiva se processa, há contudo unanimidade quanto à existência de circuitos fisiológicos estruturais, de curto prazo, ou de longo prazo. O défice funcional é um problema neurológico, e não de outra ordem, filosófica ou psicológica.

Na primeira década do século XX, Pavlov, eminente fisiologista russo, fez experiências em animais, tendo obtido o que chamou de reflexos condicionados, por respostas comportamentais a estímulos reduzidos. O envolvimento emocional foi reconhecido, mas o circuito da memória não foi demonstrado.

Em 1939, Egas Moniz, Prémio Nobel da Medicina, propôs a leucotomia frontal, como forma de tratar algumas doenças psiquiátricas, sem tratamento médico à data. Era o início da psicocirurgia, como forma de curar doenças do foro psicológico, tratando-se neste caso de separar cirurgicamente uma área do cérebro na região frontal. Almeida Lima, neurocirurgião que trabalhava com Egas Moniz, encarregou-se da cirurgia e até finais dos anos 40, muitos portugueses foram operados, bem como inúmeros americanos.

A técnica foi definitivamente abandonada devido às graves perturbações da memória e do comportamento na maioria dos doentes. Os circuitos da memória continuaram a permanecer obscuros.

Em meados dos anos 50, um doente, designado HM, fez uma cirurgia cerebral nos Estados Unidos para destruição de uma região híper excitada nos dois lobos temporais, devido a epilepsia não controlável com tratamento médico já disponível na altura. O grave problema epilético resolveu-se, mas o doente perdeu totalmente a memória. E, durante 20 anos, manteve toda a sua capacidade motora e capacidade normal intelectual noutras áreas, mas só reconhecia os médicos que o acompanhavam no momento preciso em que estava com eles. A memória retrógrada, mais antiga, ainda estava presente, mas era incapaz de reter e reconhecer memórias de longa duração adquiridas.

Desde então, acabou por ser reconhecido por muitos investigadores que o cavalo-marinho e a ameixa teriam sido danificados e eles constituíam, provavelmente, o eixo central da memória, mas a desconexão do córtex frontal impedia a tomada de consciência de importantes fenómenos emocionais, com repercussão na memória de longa duração.

Em novembro de 1981, deu entrada na Urgência dos HUC, um caso macabro de um doente com uma faca espetada na nuca, cuja lâmina, com cerca de 15 centímetros, perfurara o osso e progredia até uma região bem profunda do cérebro. A cirurgia decorreu sem incidentes, mas era difícil avaliar as possíveis consequências. Foi uma grande surpresa que, na avaliação do terceiro dia, a força era normal nos 4 membros, fazendo marcha sem apoio, com discreto desequilíbrio. Apenas a memória do seu trabalho profissional, como matemático, era impossível, não conseguindo sequer realizar contas simples. Recuperou grande parte da atividade intelectual, registada por mim em consultas mensais.

Três anos depois, a memória de curta duração e a de longa duração, adquirida pós cirurgia, eram altamente deficitárias. Mantinha recordações da infância e a atividade motora era normal. Mas, neste caso, os circuitos do sistema límbico, mediados pelo fórnix e hipocampo, foram seccionados pela lâmina, produzindo uma amnésia grave e distúrbio emocional acentuado.

O mau funcionamento da área límbica também pode ocorrer face à morte celular maciça em doentes alcoólicos crónicos, mal nutridos, sendo este síndroma – Korsakoff – caraterizado por demência, confabulação e grave alteração da memória. Áreas mais extensas do córtex cerebral são danificadas pelo défice de vitamina B1 e excesso de álcool. Acontece que, em doses moderadas, o álcool é estimulante. Mas também o excesso, em fase aguda, provoca uma depressão da formação reticular do tronco cerebral e coma. Sim, porque se beber álcool a mais na Queima das Fitas posso mesmo entrar em coma. O tempo e atuação e a quantidade podem lesar o cérebro de forma diferente.

Estudos científicos recentes, de 2017, também provaram que o uso prolongado de marijuana produz uma desorganização na memória – e outros défices cognitivos -, por destruição progressiva do circuito límbico, com morte neuronal, que se pode tornar irreversível.

Sendo a perturbação da memória um defeito constante em todas as demências e as demências são situações clínicas com prevalência tão alta na idade da reforma, quero deixar um sinal de esperança aos reformados, porque têm experiência acumulada e passam a ter mais tempo disponível.

Os diamantes-mandarins são aves com cerca de 10 centímetros, cujo cérebro, na época de acasalamento, aumenta, devido à produção de neurónios, sobretudo na região do hipocampo. Esta neurogénese revela o aspeto plástico do cérebro, que pode regenerar células nervosas, facto que não era equacionado há 50 anos.

Podem seguir o exemplo dos mandarins, ou apenas treinar o estar bem e o estar de bem com os outros. Criar empatia cognitiva. A memória vem por acréscimo.

 

Raimundo Fernandes
(Médico, Neurocirurgião)

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