Tudo indica que se vislumbram tempos de mudança. Um novo paradigma ajudará a ultrapassar o desinvestimento e exclusão da saúde mental. Podemos começar por reconhecer o sofrimento do outro, evitando-se repetir o estigma com que a sociedade agrava a vulnerabilidade dos portadores de doença mental

Nos tempos modernos não podemos esquecer o viver, a partilha da realidade e das emoções, tentando atenuar a crueldade destes tempos anónimos e impessoais, fomentar uma vivência mais rica de valores e de calor humano. A verdade é que com o desenvolvimento e o progresso científico, as pessoas isolaram-se, embora mantenham a conexão através dos iPhones, mas sem a interação com o outro e a natural experienciação que vai moldar a plasticidade cerebral própria de cada um.

Esse mesmo progresso científico, através das neurociências, veio contribuir para clarificar as capacidades e funções do cérebro humano. É um caminho difícil, descodificar um órgão tão complexo, feito de biliões de neurónios, de incontáveis conexões entre eles, permitindo o desenvolvimento em cada um de nós de competências e capacidades nas várias áreas do saber, das artes à engenharia. Também nas emoções, na sensibilidade, nas várias manifestações de inteligência, no sentido crítico e noutras faculdades mentais, essas mesmas estruturas neuronais são de importância fundamental.

A organização e interconexão fazem-se de acordo com a nossa aprendizagem no dia-a-dia e isso explica a nossa especificidade, o que somos e como agimos, as memórias traumáticas e, também deste modo, a génese da atuação psicoterapêutica. Ao afirmar estas ideias não esquecemos a influência genética na expressão das nossas características pessoais, mas valorizamos sobretudo a importância da interação de cada um com o meio em que se desenvolve.

O homem é um todo, sendo que a sua mente é baseada num cérebro que se relaciona e interage com um determinado contexto social, económico e emocional, ultrapassando a conceção redutora de que tudo se deve às performances das conexões nervosas, mas que não nos leva a dizer que a doença é resultado de erro educacional.

Somos seres livres e vivemos com os dispositivos biológicos, mas também com o bom senso que nos permite existir com ligações morais e emocionais aos outros, sendo estas as armas que usamos para traçar as diretrizes da nossa vida.

Se as estruturas cerebrais estiverem com bom funcionamento e se as vivências e o desenvolvimento emocional decorreram harmoniosamente, haverá com certeza uma base para desfrutarmos a qualidade de vida e o bem-estar. A saúde mental e o sofrimento psicológico não se esgotam num organicismo redutor, pelo que hoje a psiquiatria tem de olhar aos determinantes sociais e culturais das patologias e, na clínica, relevar os aspetos relacionais, como os valores e a ética.

Ao viver em sociedade, partilhamos os valores e as mais variadas coisas do nosso modo de existir, num constante interagir, que vai determinar as sensações e emoções que existem de forma simbiótica na qualidade de vida. Ao acentuar esta relação estrita entre as condições de vida e a saúde, lembramos a importância estatisticamente comprovada das crises sociais e económicas no deteriorar da saúde mental, fundamentalmente nos grupos mais vulneráveis. Queremos aqui referenciar a vulnerabilidade dos portadores de doença mental, sendo que a sociedade agrava as suas condições de vida, pela estigmatização e exclusão no trabalho, na família e na sociedade em geral.

O desenvolvimento de uma sociedade não pode só englobar a riqueza com todos os índices de produtividade, tem que olhar para o bem-estar das suas populações, para a dignidade de todos os cidadãos e fazê-los sentir que a vida vale a pena, mesmo que as potencialidades e capacidades sejam diferentes. O reconhecimento do sofrimento do doente (do outro) e a (nossa) compreensão do que significa essa realidade são determinantes éticos de uma boa relação.

Tudo indica que se vislumbram tempos de mudança, provavelmente com aspetos altamente positivos para a população em sofrimento psicológico e/ ou com doença mental, alterando as práticas e os métodos. Estamos convictos que um novo paradigma, promotor de novas formas de olhar, de novos métodos de intervenção, com uma visão global de prevenção e informação, vai permitir detetar vulnerabilidades, situações de marginalidade, dependências ou mesmo disfunções de natureza familiar, causadoras muitas vezes de psicopatologia.

Será uma forma de ultrapassar um período longo de negligência, desinvestimento e exclusão, combatendo a estigmatização e promovendo-se assim a inclusão. Diríamos que se acentua deste modo a vertente ética, no sentido de sentirmos o outro, de percecionarmos o impacto de um acontecimento ou circunstância na saúde pessoal, bem como a influência da doença na qualidade de vida do cidadão.

Esta também é uma visão que valoriza os aspetos humanistas, dando realce à relação entre saúde e condições de vida, perspetivas de futuro, consciência social do homem e dignidade humana. Caminhamos 􀏐inalmente para modelos que privilegiam a intervenção baseada na família, na comunidade, de natureza multidisciplinar, diminuindo-se os fatores de exclusão e responsabilizando-se as várias estruturas na reabilitação e acompanhamento da pessoa doente.

A psiquiatria é a especialidade da medicina que tem este papel de ir para além dos sintomas e de se focalizar no homem, na tarefa de autorregulação que a mente desempenha, olhando para as queixas como manifestações do turbilhão interior de emoções, afetos ou até defesas, perante perigos e receios que não se dominam. Ao promovermos a saúde da mente estamos a pugnar, não só pela liberdade da pessoa, mas também por um quotidiano de respeito pela vida humana, pelo ambiente, pelos direitos sociais do cidadão, pela sua cultura e por um novo estilo de vida e práticas
inovadoras de humanização dos espaços públicos.


António Reis Marques
(Médico, Psiquiatra)

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