À primeira vista parece uma contradição, mas foi o isolamento que salvou as Flores e se hoje ainda existe um lugar onde mora a natureza, ele fica ali, naquele pedaço de terra mais ocidental

Esqueça tudo o que já viu e ouviu sobre paisagens naturais. Reúna todos os sentidos e solte-os assim que aterrar nas Flores (Açores). Não precisa esfregar os olhos se logo à chegada lhe aparecer uma galinha indecisa por onde seguir, entre as opções passadeira, alcatrão ou rotunda do aeroporto. É comum. Os animais andam livremente e as pessoas também. Coelhos selvagens (hoje menos), galinhas poedeiras e, claro, vacas – porque este ainda é território de vacas felizes – podem aparecer a qualquer momento, porque nem eles distinguem muito bem o “campo da cidade”. É normal, porque não há cidades em toda a ilha das Flores, há povoações. E sim, é ali, no fim da Europa e à porta das Américas que o tempo ganha outra dimensão. Não é só o fuso horário ou a placa continental que muda, nós também mudamos. O tempo passa a ser relativo, porque o que nos envolve tem uma dimensão incomum e por mais voltas que eu possa dar às palavras, vai ser difícil ilustrar com linguagem escrita o que cada um de vós pode levar das Flores. Vou tentar.

Fomos em trabalho, é certo, mas não nos deixaram sair da ilha sem ficarmos a perceber as Flores que a ilha tem… e acabámos por ganhar uma visita guiada. Ficámos vinculados ao nosso guia e limitados pelo tempo que tínhamos disponível. No início, não me pareceu muito fácil conduzir nas Flores. Não pelo excesso de trânsito ou má acessibilidade das estradas, muito pelo contrário, mas sim porque todos conhecem todos e é quase impossível manter as duas mãos no volante e os dois olhos na estrada. Uma das mãos deve estar sempre disponível para acenar a quem passa, porque entre os 17 km de comprimento e os12 km de largura, todos se conhecem…

Sempre que aparece um forasteiro, ele é logo identificado como turista e, na dúvida, o “bom dia” passa a ser “good morning”. Normalmente são estrangeiros sim e estes sabem quase
sempre ao que vêm e porque vêm. Os portugueses, nem sempre e não raras vezes não resistem em perguntar onde fica o centro comercial mais próximo? Pois bem, não há.

Nas Flores, a mais ocidental de todas as ilhas, contamos com a presença do sol, do vento, da chuva, dos mantos verdes, dos jardins sem jardineiro, das ribeiras, rochas, falésias lagoas, cascatas e, claro mar, muito mar… Sorte a das Flores, porque foi o seu isolamento que a salvou. Se hoje, no século XXI ainda existe um lugar onde mora a Natureza, esse lugar fica nas Flores – que me perdoem as outras ilhas. A ilha das Flores (juntamente com a Graciosa e Corvo) pertence à Rede Mundial de Reservas da Bioesfera da Unesco. Não se pense que esse facto é tão só um acaso. As Flores merecem, porque é mesmo um sítio com relevância ambiental.

Isolada, mas não perdida


O barco nem sempre chega e o avião nem sempre aterra. Esta incerteza também está presente no dia-a-dia de quem vive nas Flores, mas não chega a desassossegar, muito pelo contrário, amadurece a paciência e ensina a saber esperar. Sempre foi assim, desde o início. E, neste caso, o primeiro contacto com a Ilha das Flores terá acontecido no século XV, por engano e depois de uma viagem de regresso da Terra Nova.

Durante séculos as visitas à ilha foram raras e o isolamento sempre fez parte do quotidiano de quem ali morava. Os corsários britânicos e os piratas da época seriam os únicos que
atracavam por aquelas paragens. Mais recentemente foram os baleeiros americanos, que acabaram por contagiar todos os açorianos com os desafios da caça à baleia. Em 1966, o isolamento de séculos parecia ter sido quebrado. A Estação de Telemedidas das Flores, mais conhecida por Base Francesa, haveria de mudar o ritmo da ilha. Um aeroporto, um hospital, uma central elétrica e uma barragem seriam contrapartidas. Durante quase 30 anos, as Flores “falaram” francês.

Facilitavam-se as ligações, não existiam problemas de abastecimento e havia emprego. Em trocam os franceses dedicavam-se a estudar as trajetórias e a detetar mísseis balísticos de
médio alcance. Hoje, ainda sobra o “bairro dos franceses”, mais nada. O hospital foi transformado em centro de saúde e, em caso de emergência médica, a evacuação é feita por avião, da SATA e, em situação de mau tempo, por helicóptero.

Claro que não faltam flores que, tanto podem estar num vaso, à porta de uma casa, como no Morro Alto, a 914 metros de altitude. Aliás, o interior da ilha surpreende por isso mesmo, ao vento, chuva e nevoeiro, logo pode suceder uma paisagem divinal que nunca imaginaríamos inserir num eventual cardápio português. É esse ambiente que convida a respirar fundo, parar e ficar assim mesmo, quieto e imóvel. O único desassossego poderá ser o barulho da passarada, principalmente ao fim do dia, quando se junta um bando de cagarros

O vento e a chuva também podem levar a pensar que, afinal, esta não é de todo uma boa altura para ficar a conhecer a ilha. Mas, por vezes, basta descer meia dúzia de quilómetros ou dar tempo ao movimento do relógio, para que tudo se dissipe e redescobrir que afinal, qualquer dia é um bom dia para conhecer as Flores e se a sua opção for caminhar, opte sempre por um dos 42 caminhos certificados, é mais fácil não se perder.

Conceição Abreu

Jardins sem jardineiros


Desde cedo, os pássaros migratórios encarregaram-se de espalhar as sementes que iriam dar o nome à ilha, as flores. A água fez o resto. As escarpas deram vida aos riachos e as cascatas tornaram-se uma imagem de marca da ilha das Flores. Poço Grande e Poço do Bacalhau, são nomes que podem enganar, porque não é mesmo de um poço que se trata, mas sim de cascatas de água. Na primeira, o acesso exige uma caminhada de 15 minutos em piso de cascalho, na segunda o acesso está logo ali, paredes meias com a povoação de Fajã Grande.

Aos poços, junte-se as inúmeras lagoas que vêm lembrar a origem vulcânica da ilha. Neste caso, o difícil é decorar o nome de todas elas, Lagoa da Caldeira Funda, Lagoa da Caldeira Rasa, Lagoa Comprida, Lagoa Escura, Lagoa Seca, Lagoa Branca e Lagoa da Lomba. Para que não restem dúvidas sobre as origens geológicas, quando se avista a Rocha dos Bordões percebemos que a ilha resultou de vários acidentes e ainda bem que isso aconteceu, porque se assim não fosse como poderíamos ter estas Flores?

Um parque arqueológico e três museus


Quem mora nas Flores já percebeu as responsabilidades que têm na preservação, mas também das histórias que podem ser contadas, se assim não fosse, dificilmente se percebia porque a quarta ilha mais pequena dos Açores tem três museus e um parque arqueológico. O Museu Municipal de Santa Cruz das Flores, o Museu da Fábrica da Baleia do Boqueirão e o Museu das Flores são os três espaços museológicos que contam os usos e costumes da gente açoriana.

A estes, acrescente-se o parque arqueológico subaquático do Slavonia, o nosso “Titanic” que repousa a 15 metros de profundidade desde 1909. O nevoeiro cerrado e a forte corrente marítima, levaram o paquete de 160 metros de comprimento e dez mil toneladas ao fundo do mar. É também ali, ao largo das Flores que agora se começa a promover o turismo
subaquático e o Slavonia é o pretexto.

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