– Sobre a dor lombar crónica inespecífica e o abuso da instrumentação
Há atitudes abusivas e sem benefício para o doente, quando se aplica a artrodese lombar ou, em linguagem de doente, a chamada técnica dos parafusos. Não está provado que esta é a cura para a dor crónica
As descrições das dores e danos físicos, pelos doentes, caem em padrões identificáveis com suficiente consistência, chamando-se a esses padrões, síndromas. O síndroma de instabilidade lombar é um saco sem rosto, onde se faz habitualmente uma interpretação abusiva dos dados clínicos e assiste-se ao abuso médico no esforço para explicar a causa da dor lombar idiopática.
Comecemos com a indicação sobre duas notas explicativas para o doente, pessoa normal e razoável, não consciente dos riscos materiais do procedimento recomendado, bem como das alternativas terapêuticas disponíveis.
Todos os tecidos espinhais, exceto o núcleo pulposo dos discos intervertebrais contêm terminações nervosas, que se acredita serem capazes de provocar dor, incluindo a camada exterior do anulus fibroso. A dor pode, portanto, ter origem em todas as estruturas do segmento vertebral–osso, ligamentos, discos, facetas articulares, músculos, meninges, medula e raízes nervosas. E em concreto, em certos doentes, todas elas podem estar comprometidas. Pode não ser a instabilidade, mas a distribuição anormal do esforço no segmento vertebral, que causa a dor.
A segunda nota é sobre a constituição da unidade funcional da coluna. A coluna intacta, altamente instável sem músculos, é uma pilha de ossos, com discos moles, interpostos entre cada dois corpos vertebrais, e cada conjunto de duas vertebras com corpo vertebral superior e inferior, disco, ligamentos e elementos posteriores constituem a unidade funcional, harmoniosamente articulada com as outras, e contendo no canal medular, as estruturas nervosas nobres, e verdadeiramente essenciais ao movimento.
Pois a artrodese, fusão lombar, ou em linguagem de doente a técnica dos parafusos, imobiliza uma ou mais unidades funcionais, retirando todo o movimento ao segmento vertebral em causa. A instabilidade, ocasionada por tumores, fraturas, infeções ou inflamações evolutivas, deve ser corrigida com estas técnicas, sob risco de permitir a lesão das estruturas nervosas. Contudo, a conclusão simplista, que a dor lombar, em doença degenerativa, tem uma causa perfeitamente identificada, apenas por sugestão radiológica, e a cirurgia a conclusão lógica do tratamento, é errónea, com custos patrimoniais e clínicos acentuados e por vezes irreparável.
Importante é a recolha de uma história clínica cuidada, um exame neurológico competente, relacionar judiciosamente as alterações anatómicas com a dor particular de cada doente, e selecionar, entre os diversos tratamentos, aquele que mais se ajusta a cada caso particular.
Num terreno tão difícil como a dor lombar, em doença degenerativa, a generalização terapêutica, sem protocolos bem definidos, pré e pós tratamento, é abusiva, questionando-me eu, se é ético fazer a fusão de unidades funcionais lombares, apenas porque supostamente são instáveis.
A falta de ética está no fato de o benefício do doente ser questionável, o benefício do médico ser evidente e a decisão não ser partilhada para além dos dois.
É inquestionável, que tantos doentes, com imagens acidentais de instabilidade têm tão pouca ou nenhuma dor, e tantos doentes com dor lombar não têm instabilidade demonstrável. Vinte por cento dos doentes, dez anos após a excisão de disco tem instabilidade, mas a correlação com sintomas é pobre. Em suma, a terapia agressiva nunca deveria ser feita, sem razoável evidência de evolução desfavorável, com tratamentos menos invasivos. Não está provado, com estudos prospetivos randomizados que a artrodese lombar seja uma forma de cura, da dor crónica, ou que a correção da instabilidade mecânica elimine o sofrimento do doente.
Uma das principais causas de cefaleias crónicas deve-se à instabilidade da articulação temporomaxilar. Cefaleia holocraniana com irradiação ao ouvido, despertada por movimentos de mastigação e tensão exagerada dos músculos mastigadores. Sob uma esfera rígida como o crânio, o maxilar inferior é a única estrutura móvel do complexo crânio facial, sem a qual não seria possível fazer alimentação oral. Que eu saiba, ainda nenhum cirurgião se lembrou de bloquear as articulações temperomandibulares por cefaleias crónicas.
A dor crónica, despertada durante a marcha e em repouso, na região da bacia, deve-se fundamentalmente ao desgaste progressivo das articulações coxofemorais, que, para além da dor, podem conduzir a anquilose daquelas articulações e compromisso grave da marcha e da postura. Não é do meu conhecimento que algum cirurgião tenha preconizado a artrodese coxofemoral para tratamento da dor crónica, sendo prática corrente o restabelecimento do movimento com prótese.
As mulheres girafa, da tribo Karem no norte da Tailândia começam desde os três aos cinco anos a colocar anéis no pescoço, até cerca dos vinte e cinco anos. O pescoço pode chegar a uma altura de quarenta centímetros, à custa da pressão dos anéis sob as clavículas e as costelas. O pescoço fica rígido, com os anéis, e a mobilidade limitadíssima, e a consequência mais grave é a incapacidade total de os músculos cervicais suportarem a cabeça sem os anéis, devido a generalizada atrofia muscular. Esta atrofia ocorre por falta de movimento.
Idêntica atrofia acontece nos músculos que suportam o raquis anquilosado de doentes com espondilite anquilosante, por falta de uso. O movimento existente entre duas peças articulares suspende-se com a fusão articular, neste caso pela evolução da doença. De fato, para gerar movimento é necessária uma articulação móvel, e os músculos não funcionantes, perdem a capacidade de se contrair por ação da vontade, acabando por atrofiar.
O sistema nervoso central geral tem, como quase exclusiva, a função de promover o movimento através da estimulação/inibição dos músculos, nos membros e na face, e as peças chave do movimento são as articulações. Mesmo com um sistema nervoso central íntegro, o movimento só se realiza se a articulação estiver funcional.
A artrodese lombar pode ser um procedimento útil, mas a efetuar com muito cuidado, pelas consequências nefastas que pode trazer, face aos benefícios em patologias, cuja origem da dor, não está claramente estabelecida.
Regras de bom senso, com estudos clínicos e imagiológicos rigorosos ensaiando terapias não invasivas durante o tempo suficiente para avaliar resultados e, se possível, colocar o médico, no lugar do doente.
(médico neurocirurgião)
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