A ciência tem revelado o funcionamento biomolecular do corpo humano e faz-nos reconhecer a sua complexidade. Somos constituídos por triliões de células e bactérias que, em comunhão, fazem tudo funcionar, com uma precisão que impressiona, tanto mais, quanto mais nos apercebemos dos detalhes que garantem a eficácia de todas as reações bioquímicas de modo a assegurar esse equilíbrio e, portanto, a nossa saúde na maior parte dos dias, para a maioria de nós
De entre os muitos tipos de células que definem cada tecido, cada célula funciona como uma pequena fábrica especializada, traduzindo informação (genética) que está codificada nos cromossomas, guardados no núcleo e herdados em partes iguais dos dois progenitores, ficando com 22 pares idênticos e um par que define o sexo (XX – feminino; XY – masculino), num total de 3.000 milhões de letras (C, A, T, G – nucleótidos – em proporções variáveis), que constituem o genoma nuclear, a partir do qual se formam as proteínas. Da tradução dos milhares de códigos (genes) do genoma nuclear, surgem todos os componentes do organismo, à exceção de 13 “peças” das “fábricas da energia”.
Além do núcleo (um organelo), existem mais estruturas e organelos, com funções sectoriais específicas. No que diz respeito à produção de energia no organismo humano, ela ocorre maioritariamente nos organelos denominados “mitocôndrias”, as “fábricas de energia”, ou “centrais energéticas”, das nossas células, onde se forma a maior parte do ATP (adenosina trifosfato), a “moeda” da energia, que faz tudo funcionar no nosso corpo. Existem em número variável, tanto maior quanto maior a necessidade de energia para fazer funcionar o tecido ou órgão em causa; por exemplo, o cérebro, o coração, os músculos e o fígado estão entre os maiores consumidores de energia, pelas funções que desempenham no funcionamento do organismo.
As mitocôndrias são organelos especiais que possuem o seu próprio genoma (mitocondrial – mtDNA, constituído por 16.568 pares de nucleótidos), com algumas características particulares, que o distinguem do genoma nuclear (cromossomas do núcleo): é circular, como o das bactérias, é muito sensível aos danos, sobretudo por ação de radicais livres e existem diversas cópias por mitocôndria e por célula, dependendo do tipo de tecido. Normalmente é herdado apenas por via materna, derivado do óvulo da mãe.
Um acaso da natureza
Mas atenção, porque o seu funcionamento depende de cerca de 1.700 genes com origem nos cromossomas, ou seja, depende da informação herdada de ambos os progenitores. Por isso, nada de culpar as mães, ou seja, quem for, por ser portador de uma alteração genética. Herdar um defeito genético é um acaso da natureza, como qualquer evento que escapa ao nosso controle e vontade. Estes erros genéticos causam muitas vezes doenças que necessitam de cuidados especiais e não é justo, nem correto, que alguém vire as costas, porque o outro progenitor pode ter transmitido esse erro. O importante é unir esforços para lidar o melhor possível com as dificuldades que uma doença, nomeadamente associada à disfunção da mitocôndria, traz a qualquer família.
Na membrana interna das mitocôndrias, existem várias unidades de produção de energia. Cada uma delas constitui a cadeia respiratória mitocondrial (CRM), que inclui um conjunto de 5 complexos formados por várias subunidades proteicas, codificadas por ambos os genomas e dois transportadores de eletrões (“transmissores de corrente elétrica”), um dos quais é a famosa Q10 (coenzima Q ou ubiquinona), que, para além de participar na produção de energia (ATP), é um “neutralizador” importante de radicais livres. Estes, quando em excesso, são uma fonte de problemas, que vão desde danos às membranas das células, lesões do material genético, até à morte celular. A síntese de ATP, através do processo de fosforilação oxidativa, requer oxigénio para receber os eletrões no complexo IV, transformando-o em água. É também por isso que as árvores são preciosas, para nos dar o oxigénio, sem o qual a síntese de energia seria insuficiente para manter vivo e a funcionar, um organismo tão complexo como o nosso.
Para que a CRM tenha todas as “peças” a funcionar, é necessário traduzir o código genético em cerca de 1.700 elementos do genoma nuclear e do mtDNA, tendo este último apenas 37 genes para formar 13 proteínas que integram a CRM.
Quando existem defeitos genéticos que comprometem a estrutura e/ou a função de uma dessas “peças” – proteínas, podem surgir doenças, as citopatias mitocondriais ou “avarias na fábrica de energia”. São doenças complexas, muito debilitantes, e, frequentemente, fatais. No Laboratório de BioMedicina Mitocondrial e Teranóstica (LBioMiT, Universidade de Coimbra), a equipa dedica-se há mais de 28 anos a estudar estas doenças, para identificar as suas causas e esclarecer os seus mecanismos, para que os doentes tenham o direito a ter a sua doença identificada e para que haja esperança de encontrar um tratamento.
A complexidade das citopatias mitocondriais é, de facto, muito grande; a sua heterogeneidade também. A diversidade nas manifestações clínicas, que vão desde fraqueza muscular, cegueira, surdez, insuficiência cardíaca ou renal, anemia, entre muitas outras, torna o diagnóstico um desafio difícil. Existem exames auxiliares de diagnósticos, que vão desde o eletrocardiograma, eletroencefalograma, avaliações oftalmológicas, até às análises imagiológicas de órgão, particularmente do cérebro. A análise histológica do tecido muscular também pode revelar anomalias estruturais das mitocôndrias que dão pistas importantes para o diagnóstico.
Existem ainda alguns biomarcadores importantes, que se acumulam devido ao défice de produção de energia, como o aumento de alanina (aminoácido) ou de lactato (ambos derivados de piruvato, um metabolito que resulta da metabolização da glicose) e de corpos cetónicos (ácidos orgânicos acetoacetato e beta-hidroxi-butirato; são derivados da incapacidade de metabolizar com eficácia um intermediário metabólico – acetil-coenzima-A; encontram-se mais elevados a seguir à refeição). Estes metabolitos podem ser detetados no sangue e/ou na urina, mas não surgem em todos os doentes, devido a compensações metabólicas, o que dificulta mais ainda a identificação do defeito bioquímico que está subjacente à doença.
As alterações bioquímicas no sistema da produção de energia, que podem estar associadas às citopatias mitocondriais também são diversas e incluem a alteração de um ou vários complexos da CRM, ou mesmo um défice na quantidade de Coenzima Q (ubiquinona). A análise bioquímica funcional da CRM, em células (do sangue ou da pele – fibroblastos) é uma ferramenta crucial para a identificação de um défice na doença. Em alguns casos, em fases mais precoces da doença, a análise do tecido afetado pode não revelar o defeito bioquímico da CRM, devido ao facto das mitocôndrias que mantêm a sua função “normal”, aumentarem a sua atividade para compensar o défice energético, o que dificulta a identificação do defeito bioquímico que está na base da doença e que muitas vezes serve de guia para a investigação genética.
Deteção de erros genéticos
Existem diversas técnicas para a deteção e quantificação (no caso do mtDNA) dos erros genéticos que causam as citopatias mitocondriais, que incluem a sequenciação total e quantificação do número de cópias do mtDNA, a pesquisa de deleções neste genoma e a investigação de todos os genes dos cromossomas do genoma nuclear. Atualmente, a sequenciação de nova geração (NGS, do inglês Next Generation Sequencing) é uma técnica de eleição para analisar genomas. No entanto, como todas as técnicas, tem limitações e não permite a deteção de todas as alterações possíveis, mas tem um elevado rendimento, comparativamente a outras. Esta técnica permite a deteção de novas causas genéticas, mas quando tal acontece, é preciso provar a sua patogenicidade, ou seja, demonstrar que o defeito genético é a causa da doença, através de estudos de genómica funcional, que são também realizados no LBioMiT. Mais recentemente, foi desenvolvido um teste para, em 24h, identificar as três alterações mais frequentes associadas a uma citopatia mitocondrial que causa cegueira, a neuropatia ótica hereditária de Leber (LHON).
Quanto à sua origem genética, que é essencial para a confirmação do diagnóstico, ela pode incluir um erro num dos dois genomas ou nos dois em simultâneo. De entre os genes localizados no genoma nuclear, existem alguns que são responsáveis pela biogénese e estabilidade do mtDNA. Quando se descobriram “mutações” nesses genes, que causam alterações do genoma mitocondrial, iniciou-se a era da Bigenómica. As alterações genéticas que estão na origem das citopatias mitocondriais são de diversos tipos: alterações de um nucleótido, que podem alterar a composição e/ou a quantidade da proteína e, consequentemente, a sua função; deleções (perdas de partes do genoma que podem afetar um ou mais genes); depleção do genoma mitocondrial (redução drástica do número de cópias do mtDNA, geralmente causada por alterações de genes nucleares) – este é o exemplo por excelência das doenças bigenómicas. Existem ainda algumas variantes genéticas, que por si só podem não causar danos, mas, em conjunto com fatores ambientais (tabaco, álcool, medicamentos, substâncias químicas várias), podem levar ao surgimento de doença. Por exemplo, o tratamento com um tipo específico de antibiótico – aminoglicosídeos, em pessoas que sejam portadoras de algumas variantes genéticas do mtDNA, pode levar a que estas desenvolvam surdez.
Quanto mais energia for necessária para o tecido funcionar, maior é o número de mitocôndrias e de cópias de mtDNA que contém. Uma das características importantes do mtDNA é a heteroplasmia, ou seja, a co-existência de moléculas de mtDNA “normais” e “mutantes”. Em geral, quanto maior é a percentagem de “mutantes”, maior é a probabilidade de ter a doença ou a sua gravidade, sendo definido o “efeito limiar”, que é a “gota de água que faz transbordar o copo”, ou seja, a percentagem de moléculas de mtDNA “mutantes” a partir da qual o tecido deixa de funcionar adequadamente e a doença se manifesta.
Mistérios por resolver
Estas doenças podem afetar qualquer órgão ou tecido que tenha mitocôndrias e manifestam-se em pessoas de qualquer idade, desde o período fetal até idades muito avançadas. Podem afetar vários órgãos em simultâneo, inclusivamente não relacionados pela sua origem embrionária. Os defeitos genéticos ligados ao mtDNA são específicos de alguns tecidos, tendo em conta a heteroplasmia e o efeito limiar, acima mencionados. Contudo, em algumas destas patologias, cujos mecanismos são ainda desconhecidos, apesar de todas as moléculas de mtDNA em vários tecidos serem “mutantes” (homoplasmia), alguns familiares são portadores e não desenvolvem a doença. Quanto às alterações do genoma nuclear, apesar de se encontrarem em todas as células da pessoa afetada, não afetam todos os tecidos da mesma forma. As alterações funcionais que vão dar origem às manifestações físicas da doença (fenótipo clínico) só ocorrem em alguns órgãos ou tecidos. Este é ainda um dos mistérios por resolver nesta área do conhecimento e a nossa investigação científica também inclui a procura da resposta que pode vir a esclarecer esse mecanismo.
De entre as muitas citopatias mitocondriais descritas, destacam-se duas pela possibilidade de tratamento: os défices de ubiquinona e a LHON. A primeira caracteriza-se maioritariamente por perda de equilíbrio (associada a outras alterações, como convulsões ou cardiomiopatia, entre outras). A segunda está associada a perda da visão central e cegueira, devido ao défice nas mitocôndrias das células ganglionares da retina, que fazem parte do nervo ótico, essencial para a visão.
Os tratamentos para estas doenças são limitados e, na maioria dos casos, dirigem-se aos sintomas, como por exemplo a epilepsia, em que é preciso tratar as convulsões. No entanto, os défices de ubiquinona são tratáveis com um análogo químico, a Coenzima Q10, facilmente absorvido pelo organismo durante uma refeição, muito eficaz, levando os doentes a uma recuperação extraordinária. Também a LHON é tratável com idebenona, um outro análogo químico da ubiquinona, que, em muitos doentes, permite a recuperação da visão central.
Em 2012, no Reino Unido, foi aprovada uma abordagem para fertilização in vitro (FIV), usando mitocôndrias de uma dadora e o núcleo do óvulo da mãe portadora de variante patogénica (“mutação”) do mtDNA, deletéria e causadora de citopatia mitocondrial, de modo a prevenir o nascimento de um bebé com a doença. É de salientar que esta abordagem não é possível em todos os casos e que o processo é complexo, tendo em conta as especificidades da FIV.
Existem também outras doenças, nomeadamente neurodegenerativas, como as demências de Alzheimer e Frontotemporal, doença de Parkinson, ou esclerose lateral amiotrófica, entre outras, em que os défices energéticos também ocorrem, secundariamente aos fatores primários da doença, podendo existir variantes do mtDNA de risco associadas.
Termos saúde é um bem extraordinário! Para abrir e fechar as pálpebras, é preciso que os músculos e os nervos associados a este movimento e seu controlo, tenham mitocôndrias em boa forma para produzir energia! Pelo simples facto de acordar e pestanejar, temos de ser um bocadinho felizes todos os dias! Tudo o mais é “acrescento”, como diria a minha saudosa avó Maria!
Sejam felizes com o que tiverem à mão! ©
Manuela Grazina
(Professora e investigadora na UC e mentora científica no CCC)
Muito bom!
Reply