Vive-se por aquilo que se respira e se come, mas também se morre pelas mesmas razões. A vida nunca será saudável para os que têm fome e o mesmo acontece quando abunda a abastança. É preciso escolher o caminho
Vida saudável foram mesmo aqueles primeiros 9 meses, em que, repimpadamente, fui alimentado através de uma mangueira, tinha piscina aquecida a 36º e ouvia o canto de sereias, ainda sem saber que havia fome, guerras, micróbios invisíveis e inveja mesquinha de quem nascia contente. A placenta protegia-me.
A partir do momento em que me puxaram por aquelas paredes apertadas tive, pela primeira vez, vontade de chorar e chorei. Ou melhor, berrei que nem um desalmado. Enchi-me de coragem e comecei a respirar oxigénio. Percebi rapidamente que isso era bom para o coração e para o cérebro. O cheiro a leite despertou-me o apetite, e sem ninguém me ensinar, comei a morder a teta até encher a pança. Não gostei muito que me batessem nas costas, para arrotar, mas fui-me habituando. Dormia sempre quentinho, e só acordava quando tinha fome.
Aprendi depressa que para viver só é preciso respirar oxigénio, de preferência sem fumos, e comer. De princípio eu não comia, só bebia, porque não se pode viver mais de 3 a 4 dias sem beber, e sem oxigénio apenas 3 a 4 minutos. Portanto, aprendi o básico no início. Foi um período bom, saudável.
A partir da minha entrada na escola… foi o sarampo, a papeira, a tosse convulsa, o cobrão e, em alguns amigos, a varíola, a meningite, e os que viviam em barracos, a tuberculose, a malária e a barriga inchada pela cólera. Safei-me às infeções das feridas de guerra, na 1ª Guerra Mundial, ainda sem antibióticos. O aparecimento da penicilina, em 1925, foi um raio de luz para as pneumonias e para os desgraçados com doenças venéreas, nomeadamente a sífilis. Dizia-se na altura, “uns minutos com Vénus, toda a vida com mercúrio”.
Pouco depois apareceu o remédio para os epiléticos e até já se faziam transfusões de sangue, desde o virar do século XIX. As cirurgias já não eram feitas com éter e clorofórmio, a anestesia veio adormecer tranquilamente os doentes, enquanto os cirurgiões desbravavam as entranhas. Sabia-se que o cérebro servia para alguma coisa, mas os mistérios ainda eram muitos no princípio do século.
Aprendemos que a vida não era saudável com doenças, e as doenças não eram só provocadas por seres invisíveis, mas também pela incapacidade de os humanos viverem em comum, sem beligerância e sem os conflitos que causaram a morte de milhões, tantos quantos a peste, a varíola, a gripe asiática e outras. No início do primeiro Renascimento, a população mundial era de 500 milhões e a possibilidade de um inglês chegar aos 20 anos de idade era de apenas 50%. Uma vida ceifada tão cedo não podia ser saudável.
Com a Revolução Industrial, o fosso entre países ricos e países pobres ou em via de desenvolvimento, foi sendo maior, com a riqueza nas mãos de 10%, e a pobreza a grassar em continentes inteiros, como o Africano, e a maioria dos países do Oriente. A vida não era saudável para os que tinham fome, e os milhões que morreram na China, já no século passado, são prova disso.
A vida saudável tem uma bandeira, que é a saúde, e não pode ter saúde quem tem uma alimentação deficiente. Contudo, vive-se por aquilo que se respira, e se come, mas também se morre pelas mesmas razões. A alimentação abundante que se criou com a Revolução Agrícola, há cerca de 12 mil anos fez aumentar a população de 1 milhão, para 300 milhões na Era Cristã. Foi neste período que os aglomerados familiares ficaram mais concentrados, deixando a situação de mobilidade permanente, como caçadores coletores, e sedentarizaram-se em pequenos núcleos. Antes das grandes civilizações que vieram a emergir, teria sido eventualmente o período mais saudável, para os jovens filhos, que faziam até tarde parte do núcleo familiar e social, das pequenas urbes.
Sem guerra e ainda, sem os micróbios invisíveis. Admite-se hoje, contudo, que a tuberculose ainda não conhecida como doença provocada pelo bacilo de quem o identificou nos finais do século XIX, Robert Koch, já existia desde há 7 mil anos.
À medida que uma classe média, sobretudo na Europa e EUA, foi tendo maior poder de compra, a alimentação, tão necessária à sobrevivência, passou a abastança, fazendo eclodir doenças crónicas, normalmente provocadas pelos excessos, ou a falta de regras individuais e de grupo, como a obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, aterosclerose, hipertensão arterial, hipercolesterolemia, osteoporose, e outras.
Não é de estranhar que a maior causa de morte, nos países mais ricos, sejam as doenças cardiovasculares, diversos tipos de tumores malignos, acidentes domésticos, profissionais e de viação, e nos países pobres, ainda são as doenças como a malária, tuberculose e outras infeções por bactérias, e vírus diversos. Não pode ser saudável a vida dos europeus e, especificamente dos portugueses, que tomam remédios para a hipertensão, aumento do colesterol, obesidade, diabetes, depressão, distúrbios do sono, muitas vezes em duplicado.
Não é difícil concluir que a maioria destas doenças é provocada por excessos e desvios alimentares. A degradação do ar respirado e, consequentemente, do teor de oxigénio, que alimenta o coração e o cérebro, e todos os outros órgãos e tecidos, constitui a outra face da destruição acelerada, do que está à vista, mas sobretudo, do que está escondido da vista.
A obesidade é visível, como as rugas, mas a diabetes, a hipertensão, o engrossamento das paredes arteriais, a perda de cálcio nos ossos, e outras marcas que conduzem os doentes às farmácias, essas são invisíveis, mas reais, e desnecessárias.
Reverter esse quadro invisível é a missão não só dos reformados, mas sobretudo daqueles que nos 30’s e 40’s anos entendem que os fantasmas só aparecem nos velhos e estes, adultos jovens, ainda têm muito tempo para lá chegar. As pesquisas científicas, demonstram que uma combinação de hábitos benéficos – atividade física regular, manutenção do equilíbrio mental, alívio do stress, regularização do sono e dieta – são requisitos indispensáveis para inverter o desgaste natural do envelhecimento, e promover um bem-estar prolongado, compatível com uma vida saudável.
A idade da reforma é uma marca de mudança para um novo ciclo de vida, onde se vão encontrar novas formas de estar, novas aprendizagens, fazer o que se gostava tanto e não havia tempo. É mesmo uma mudança, na continuidade da vida, e esta mudança não deve ser o início da decadência. Deve ser uma preparação para os invernos, que vão ser cada vez mais frios e para os verões, que vão ser cada vez mais quentes.
Cabe a cada um de nós, individualmente, à classe médica, à sociedade em geral, escolher os caminhos mais corretos, onde a prevenção das doenças crónicas possa inverter neste século de pandemias físicas e mentais, a marcha progressiva das lesões vasculares, cardíacas e cerebrais, dos diversos tipos de cancro, e dos transtornos da mente, que afetam neste momento, mais de 1/3 da população mundial. E com isso, a vida pode ser mais saudável.
Raimundo Fernandes
(Médico, Neurocirurgião)
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