Andamos todos “à procura da cenoura”, na busca pelo prazer e pelo bem-estar, até porque é essa via de recompensa que garante a nossa sobrevivência. E se hoje todos sabemos qual a “receita” para ser saudável, também é verdade que as pessoas continuam a ter comportamentos de risco. O cérebro é facilmente afetado pelo uso de substâncias aditivas ou pelos videojogos. A valorização que cada um dá à sua “cenoura” pode ter um efeito desastroso

“ABCDE – Avoid Alcohol, Be physically active, Cut down on salt and sugar, Don’t use tobacco products, Eat plenty of vegetables and fruits”. Traduzindo: Evitar álcool, Ser fisicamente ativo, Cortar no sal e nos açúcares (acrescentaria também as gorduras), Não usar tabaco, Comer vegetais e frutas com abundância (acrescentaria, dependendo das condições de saúde de cada pessoa). De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) é esta a “receita” para ser saudável e evitar riscos.

Então, se temos a “receita”, o que é que falta? Porque é que as pessoas continuam a ter comportamentos de risco que são prejudiciais para a sua saúde? É importante ter em conta que, dadas as características genéticas individuais, mesmo esta “receita” pode não ser adequada para a totalidade das pessoas da mesma forma e, portanto, a sua aplicação não pode ser genérica.

Examinando o funcionamento do cérebro, vejamos como as Neurociências nos podem ajudar a compreender. Uma visão geral do circuito de recompensa do cérebro mostra-nos que um conjunto de estruturas centrais, que constituem o sistema límbico, são fundamentais para respostas comportamentais e emocionais aos diversos estímulos a que estamos sujeitos, que são mediadas por neurotransmissores, moléculas que têm uma ação química fundamental na regulação dos sistemas subjacentes a esses processos. Podemos destacar dois, que são primordiais: dopamina e serotonina.

O sistema límbico é responsável pela coordenação de impulsos, emoções e memórias. Os neurónios dopaminérgicos influenciam o prazer, a motivação, a função motora e a perceção de estímulos ou acontecimentos. A serotonina desempenha um papel na aprendizagem, memória, sono, apetite e humor. Além destes dois neuroquímicos, existem outros que também fazem parte da via da recompensa, tais como endorfinas, endocanabinóides e oxitocina, mas aqueles são os que se destacam. Estes dois sistemas cerebrais são também afetados pelo uso de substâncias aditivas ou pelos videojogos. Ao alterar a atividade dessas vias, os estímulos de abuso influenciam e alteram o seu funcionamento.

Não é difícil perceber que andamos todos “à procura de uma cenoura”, na busca pelo prazer e pelo bem-estar de que todos necessitamos para viver, mas há uma fronteira para as dependências, que é importante considerar.

As substâncias externas que imitam os atores endógenos do sistema de recompensa são suscetíveis de induzir a dependência. De entre os estímulos que cada um de nós procura para tornar a sua existência prazerosa, existe uma grande variabilidade no que cada um considera a sua “cenoura”, que pode ser um par de sapatos, um cigarro, um livro, um chocolate, entre muitas outras possibilidades.

Na verdade, o efeito que cada um de nós busca e que está associado à procura de satisfação e que ocorre pela ativação da via de recompensa, é a valorização. Temos essa necessidade intrínseca. Se a procura desse estímulo se tornar um vício e se transformar numa dependência, o efeito pode ser desastroso, como é o caso do álcool e das drogas de abuso, ou mesmo de videojogos.

A via de recompensa garante a nossa sobrevivência e bem-estar e está também relacionado com a nossa resposta à dor, ao stresse, ao medo e ao perigo. Ou seja, sobrevivemos melhor com prazer na nossa vida. Não será por acaso que os dois grandes estímulos que nos fazem existir como espécie (alimentos e atividade sexual) são dois ativadores potentes da via da recompensa. Todos os estímulos e substâncias, desde a cafeína, nicotina, álcool, drogas de abuso, aos videojogos ou à vontade de comprar objetos, têm em comum a capacidade de estimular essa via. O sermos capazes de controlar os nossos ímpetos é o que impede o excesso de impulsividade, ou mesmo de agressividade que pode surgir associada.

Então como funciona a nossa capacidade de tomar decisões e de controlo dos nossos impulsos? A ressonância magnética de imagem funcional tem sido muito esclarecedora quanto às funções de áreas do cérebro específicas, tendo sido possível, por exemplo, mapear a maturação funcional do cérebro. O conhecimento quanto ao desenvolvimento do cérebro até ao início da idade adulta permitiu compreender que o córtex pré-frontal, que gere o julgamento e as funções de tomada de decisão, é a última parte do cérebro a desenvolver-se, o que ocorre por volta dos 20-21 anos de idade. Este facto ajuda a explicar porque é que os adolescentes, que são mais propensos a participar em comportamentos de risco, são particularmente vulneráveis ao abuso de substâncias ou estímulos associados ao prazer.

A chave da regulação dos nossos impulsos está relacionada com a ativação do córtex pré-frontal, que liberta um neurotransmissor inibitório (ácido gama-amino-butírico-GABA) para evitar o excesso de estimulação do sistema límbico, evitando, assim, o excesso de libertação de dopamina, que se associa a alterações do comportamento e psicose e à libertação de adrenalina que, em excesso, também é prejudicial ao funcionamento do organismo, inclusivamente da função cardíaca.

Os influenciadores do funcionamento destes sistemas cerebrais estão relacionados com fatores genéticos e nutricionais, passando também pela qualidade do sono, exercício físico, socialização, exposição a fatores ambientais (e.g. natureza, poluição, luz, temperatura) e culturais (e.g. música) ou de stresse (desde a vida intrauterina), até à interação com substâncias/estímulos de abuso.

Somos o resultado da nossa genética e da epigenética – influências ambientais e sociais na tradução do nosso genoma. Não nascemos iguais. Na verdade, somos todos diferentes. Por vezes, uma letra pode mudar tudo, nos 0,4% de informação que nos diferencia uns dos outros. A genética dita uma parte do nosso funcionamento, nomeadamente a destoxificação de tóxicos ou a eficácia no funcionamento do sistema de recompensa. 

Os estímulos da via da recompensa memorizados no hipocampo (área do cérebro responsável pelo armazenamento e processamento das memórias) também vão afetar a forma como o sistema dopaminérgico vai funcionar, incluindo na integração com os restantes sistemas. Por outro lado, o desenvolvimento, em particular do cérebro, de um novo ser na sua vida intrauterina, vai ser também modulado pelos mesmos influenciadores. A exposição ao álcool, aos produtos da combustão do tabaco, ou quantidades elevadas de açúcar, sal, gordura ou aditivos nos alimentos pode ter um impacto muito negativo, que terá a sua maior evidência na passagem para a vida adulta, nomeadamente no funcionamento da via de recompensa. 

A adversidade e a exposição a vários tipos de stresse no início da vida aumentam o risco de desenvolver uma série de perturbações e podem ser fortes preditores do desenvolvimento de dor crónica e de perturbações psiquiátricas, nomeadamente dependências ou depressão. Em particular, o stresse vivido pela gestante durante a gravidez tem muitos efeitos a longo prazo na vida da futura criança, nomeadamente: alteração das estruturas da via da recompensa; redução do volume do hipocampo e alteração do tamanho do corpo caloso (estrutura de união entre os dois hemisférios cerebrais); aumento de risco para ansiedade e depressão e redução da capacidade de atenção.

Mas, a privação do sono, particularmente em idades mais precoces e na adolescência, também altera de forma muito significativa a memória, a atenção e a perceção, a capacidade de tomar decisões, podendo conduzir à depressão e provocar alterações nas interações entre os neurónios do cérebro. Assim como a utilização excessiva da internet e das redes sociais através do uso de smartphones está relacionada com a má qualidade e quantidade de sono, que foram avaliadas num estudo (*), tendo sido demonstrado que afetam significativamente a organização e o funcionamento do sistema de recompensa e a capacidade de decisão. As ludopatias (uso abusivo de conteúdos digitais, nomeadamente videojogos), não causam diretamente a morte, mas afetam o funcionamento do cérebro, através de um mecanismo semelhante ao das drogas de abuso e alteram de forma muito crítica o funcionamento da via da recompensa e da capacidade de decisão.

Dos fatores externos, a poluição atmosférica por partículas finas, emitidas pelos veículos a motor de combustão, pela indústria e pelos incêndios, representa “a maior ameaça externa à saúde pública” a nível mundial e continua a ser a maior ameaça à esperança de vida humana, tal como mostrou o novo relatório de Air Quality Life Index (AQLI), do Energy Policy Institute da Universidade de Chicago. O relatório do observatório europeu dos sistemas e políticas de Saúde, no âmbito da análise do estado da saúde na UE – Portugal – Perfil de saúde do país 2021, mostra que cerca de um terço das mortes podem ser atribuídas a fatores de risco comportamentais. 

O tabaco contribui com 12% (UE 17%), uma percentagem semelhante aos riscos relacionados com a alimentação – 11% (UE 17%), com o álcool a contribuir com 6%; em 2019, a poluição atmosférica sob a forma de partículas finas

(PM2,5) e a exposição ao ozono contribuíram, por si só, para cerca de 2 % de todas as mortes, uma percentagem que é inferior à média da EU (4%). Assim, é possível constatar que as maiores ameaças de risco para a saúde são o fumo de tabaco, os erros alimentares e o álcool, todas relacionadas com comportamentos de risco.

Gostaria de realçar que todos nós somos influenciadores – moduladores do cérebro – uns dos outros. Tendo em conta as lições da História, podemos aprender com os espartanos, que eram invencíveis porque cuidavam dos seus companheiros e não de si próprios. Se assumirmos que uma parte do nosso tempo é usado para cuidar do outro, seremos certamente uma sociedade mais equilibrada e próspera.

Deixo, a título de exemplo, a descrição de dois projetos de literacia em ciência e saúde que visam contribuir para a prevenção e redução de danos através do conhecimento científico. Em 2005, iniciei um projeto que consiste em levar a Ciência às Escolas, visando a prevenção das dependências, com base no conhecimento: “LeCCiCo – conhece o teu cérebro! –

Levar a Ciência a quem precisa”. Consiste em levar o Conhecimento e a Ciência à Comunidade para a prevenção das dependências através da formação e promoção do Conhecimento Científico sobre o funcionamento do cérebro. O objetivo é promover a responsabilidade individual na escolha de recusar a primeira experiência de contacto com substâncias aditivas, como uma abordagem eficaz e informada para prevenir os efeitos nocivos e prejudiciais das substâncias de abuso, ambicionando salvar vidas através do conhecimento.

Recentemente, tenho estado a coordenar o projeto “Mit.OnOff – Alerta para as avarias das fábricas de energia!”. Este projeto envolve cientistas especialistas na área da doença mitocondrial, comunicadores de ciência e artistas, em alinhamento com os ODs das Nações Unidas, Agenda 2030. O Mit.OnOff assenta numa parceria bilateral (Portugal e Noruega), criada para colmatar a falta de literacia científica e de saúde sobre o tema da doença mitocondrial. No âmbito deste projeto, foi publicado um livro, que está a ser distribuído em ambos os países, criando um sentimento de inclusão e visibilidade e influenciando as decisões relativas a estas doenças.

É fundamental integrar a ciência nas abordagens de redução de danos. As decisões políticas para assegurar a proteção das pessoas contra os riscos para a saúde deverão ser sustentadas com o apoio do conhecimento científico. Dado que a procura do prazer é uma premissa da vida humana, investir em programas de cultura e desporto e apostar na valorização da vida humana é essencial.

Não devemos esquecer que a saúde mental é frágil, como uma bolha de sabão. Somos todos diferentes e alguns de nós são mais vulneráveis do que outros. Se tomarmos medidas para aumentar o bem-estar, reduzindo o stresse e a ansiedade e valorizando a pessoa humana, seremos mais bem-sucedidos na proteção das pessoas contra os efeitos nocivos do tabaco e de outras substâncias ou comportamentos de abuso. Viver é um risco, e muitas das nossas opções diárias não são isentas de perigo, mas temos de nos assegurar que as decisões são informadas e que existe o respeito pela individualidade e pela liberdade nas escolhas de cada pessoa.

Viktor E. Frankl, neuropsiquiatra austríaco e fundador da terceira escola vienense de psicoterapia, a Logoterapia e Análise Existencial, diz-nos que “Entre o estímulo e a resposta há um espaço. Nesse espaço está o nosso poder de escolher a nossa resposta. Na nossa resposta reside o nosso crescimento e a nossa liberdade.” 

Acredito firmemente que podemos salvar vidas com o conhecimento científico.

O conhecimento é poder. A educação e a cultura são as chaves para a liberdade de escolha. A literacia é a chave para uma saúde melhor.

Manuela Grazina
(Professora e investigadora na UC e mentora científica no CCC)

(*) Abolfazl Mohammadbeigi e colaboradores, Sleep Quality in Medical Students; the Impact of Over-Use of Mobile CellPhone and Social Networks, publicado em J Res Health Sci. 2016; 16(1): 46–50

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