Poderá ser comparada a uma caixa negra de avião, aquilo que aqui definimos como catedral. Está lá toda a informação. E os cordelinhos da catedral, movidos por átomos de oxigénio, hidrogénio, carbono e nitrogénio, desenham pensamentos e sentimentos, e emoções, e até dão voz ao porteiro, permitindo que ele contacte com os porteiros de outras catedrais. Bem-vindos à caixa craniana

Há 4 milhões de anos, na mudança dos Ardipithecus ramidus para os Australopithecus afarensis, quando deixaram as copas das árvores e se instalaram no solo, os cérebros eram pequenos e pouco evoluídos. Ainda não cozinhavam os alimentos para facilitar a digestão e viviam em cavernas, em vez de catedrais. A mão-de-obra seria escassa, mas barata. Poderia pagar-se em géneros, por exemplo, uma semana de trabalho valeria um javali. Mas não havia tijolos, nem cimento, nem vigas de ferro e assim continuaram nas cavernas. Há 3,5 milhões de anos, em África, havia escassez de alimentos, e fome. Há 2 milhões de anos, transformaram-se carnívoros à força, e apareceu o Homo ergaster, com uma cúpula mais volumosa, e eficiente. 

Há 1 milhão de anos, desaparecem os Australopithecus, e 500 mil anos depois, descobriu-se o fogo, e começaram os grelhados no carvão. São dessa época os Neanderthais e mais tarde os Sapiens. Não ficámos por aí. Há 35 mil anos, desaparecem os Neanderthais e os Sapiens Sapiens começaram a imaginar como construir catedrais.

O cérebro instalado na cúpula, gelatinoso, enrugado, obeso, embebido em água e gordura, ocupava a cadeira do poder. Já tinha portas na base de construção, para as entradas e saídas dos “12 apóstolos”, democraticamente dispostos à direita e esquerda da linha média, gémeos, simétricos. Recebem informação do exterior, e do interior da catedral, informam o cérebro do que se está passando, e permitem que ele dê à catedral, consciência de si própria, e do meio exterior.

Autêntica caixa negra de avião, esta caixa craniana, que aqui definimos como catedral. Está lá toda a informação. E os cordelinhos da catedral, movidos por átomos de oxigénio, hidrogénio, carbono e nitrogénio, desenham pensamentos e sentimentos, e emoções, e até dão voz ao porteiro, permitindo que ele contacte com os porteiros de outras catedrais.

É um verdadeiro mistério, como a primeira catedral foi dando, sucessivamente e ao longo dos milénios, cópias de si mesmas. Sempre com o mesmo formato. Cúpula inacabada quando se vê a luz pela primeira vez, e o cérebro, com apenas 10% do seu formato final, assiste, durante quase um ano, ao encerramento total da cúpula, com paredes sólidas que não permitem veleidades ao seu conteúdo.

É isto que acontece nos recém-nascidos. O cérebro vai ganhando forma, atingindo a maturidade por volta dos 20 a 25 anos. Sempre alimentado pela bomba no centro da construção, a receber grande parte dos 9 mil litros diários de combustível, com um reforço diário de 2300 litros de oxigénio e 20% do açúcar total do edifício. O aparente ar descuidado deste grande Mestre – o cérebro – com uma enorme barriga de água e 60% de gordura, faz dele o habitante mais gordo da habitação, e obriga-o a hidratar-se convenientemente, já que, com apenas 2% de desidratação, fica desorientado e incapaz de dar ordens acertadas. Quando ele está sóbrio, à voz de comando, a informação caminha a uma velocidade de 400 km/h, o que, dentro da cúpula, as entregas ao domicílio são quase instantâneas.

Apesar de este Mestre não ver, não cheirar, não ouvir, não sentir, permite – através de uma comunicação bem gerida entre os 100 mil milhões de diferentes estafetas – que a catedral veja, ouça, cheire e sinta a brisa exterior, e o trabalho contínuo, ininterrupto, no interior do edifício. A patine na parede vai-se acumulando ao longo dos anos, e a irradiação da luz visível, nos primórdios, vai esmorecendo, progressiva e inexoravelmente, mas o Mestre não perde o jeito com o tempo. Apesar de ter menos estafetas, os que ficam, com um treino bem mantido, continuam a levar as mensagens a alta velocidade e, mesmo com as paredes desbotadas, a catedral continua a ser o edifício diligente e digno, de que o Mestre se orgulha.

Quando encontrarem a caixa negra leiam e ouçam com atenção toda a informação nela contida. A história de uma vida, que pode ser longa, está lá toda. Registada pelo Mestre e alimentada por trabalhadores incansáveis. Construir o amanhã é um esforço individual deste enorme trabalho de grupo que acontece dentro de uma caixa que mudou o Mundo.

Raimundo Fernandes 
(Médico, Neurocirurgião)

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