Tomar um medicamento não é o mesmo que beber um copo de água. Descuidamos os efeitos e até acreditamos na automedicação. Não há magias numa farmácia, mas há especialistas em medicamento, o farmacêutico. No futuro, chegaremos à conclusão que a intervenção terapêutica pode e deve ser individualizada. Outros já o fizeram.

O doente quer (quase sempre) o mais barato, o médico procura o mais eficaz e quem vende quer fazer negócio – lucro. No meio deste triângulo existe outro interveniente: o farmacêutico, o especialista do medicamento. Esquecemos a sua existência. A sociedade prefere automedicar-se e os médicos ficam-se pelas suas certezas. É assim que nasce o mau uso do medicamento. Aumenta o risco da ocorrência de reações adversas e de interações medicamentosas, consequências quase sempre em grande parte desvalorizadas, mas que representam uma fatia considerável do número de internamentos e de mortes relacionadas com o uso de medicamentos. Sim, porque também se morre da “cura”.

A verdade é que o papel do farmacêutico tem sido negligenciado, apesar de cada vez mais urgente e fundamental a sua intervenção. O seu papel é essencial no aconselhamento, na renovação do receituário, assim como na revisão da medicação, na sua monitorização, na identificação de reações adversas e interações medicamentosas ou na educação do doente, devendo também por isso ser imprescindível a sua ligação com os restantes profissionais de saúde. Falta ao Estado e ao Serviço Nacional de Saúde uma visão da necessidade e da real importância da interligação e comunicação dos vários profissionais de saúde. A inexistente comunicação entre farmacêuticos e médicos limita os benefícios da intervenção farmacêutica e é prejudicial para o doente. Não existe partilha de saberes e de acontecimentos relevantes, nem otimização dos recursos e dos saberes disponíveis.

O futuro da profissão farmacêutica visa o reconhecimento da importância do doente e uma maior proximidade e envolvimento, levando a mudança de foco do medicamento para o doente e para as suas necessidades específicas, porque a intervenção farmacêutica pode e deve ser individualizada. É nesta linha que têm vindo a surgir novos serviços farmacêuticos, já reconhecidos e implementados por governos de outros países.

Por cá, o olhar continua a estar direcionado para o custo do medicamento, ainda não conseguimos ultrapassar a questão da fatura que os outros dizem que temos de pagar. Falar de medicamento continua a ser uma conversa que anda sempre à volta do preço. É possível ter outros olhares, há exemplos disso. Bastou começar a olhar um pouco mais para cima antes de se chegar à conta que temos de pagar. Não temos, necessariamente, de ser os campeões na compra de medicamentos, seja antidepressivos ou antibióticos, seja fórmulas de “emagrecimento” ou remédios para a dor de cabeça. Noutros países, a questão começou a ser equacionada pelo inverso e antes de se chegar à despesa final. Claro que nesses outros países foi preciso pedir ajuda ao especialista em medicamento, o farmacêutico. Os sistemas de saúde inglês, australiano e canadiano já provaram que é possível um diálogo que envolve doente, médico e farmacêutico. Nestes países há interesse em saber se aquele medicamento específico está mesmo a ser eficaz naquele doente em concreto. Nesses outros países, as preocupações com o medicamento, não envolvem só os custos, focam-se no doente e consideram que é importante saber se os objetivos terapêuticos estão a ser cumpridos, se há discrepância de doses ou se o doente cumpre as doses prescritas. Mas ainda querem saber mais coisas, têm interesse em saber se há tratamentos demasiado prolongados, ou medicamentos inapropriados, procuram discrepâncias e averiguam se há reações adversas ou risco de interações.

Nesses outros países onde a questão do medicamento é uma preocupação, este tipo de atividades denomina-se Acompanhamento Farmacoterapêutico e Revisão da Medicação. O sucesso nos cuidados de saúde primários teve tanto relevo que levou à posterior criação de um serviço de Reconciliação Terapêutica, ao nível hospitalar. Banal, pensarão alguns, mas é assim que se podem detetar possíveis erros de prescrição, erros de dosagem, interações, duplicidade ou omissão de algum medicamento, obtendo um melhor plano farmacoterapêutico, ou seja, melhor saúde.

Algumas destas atitudes ou fórmulas de atuação podem estar a ser praticadas em Portugal, mas sem sistematização e pontualmente, fruto de estudos académicos numa tentativa de demonstrar o seu valor, como uma mais-valia indiscutível para o doente. As potencialidades deste tipo de atuação continuam a ser descuradas pelo nosso Estado, farmácias e farmacêuticos. Não por falta de profissionalismo ou por desconhecimento das reais necessidades da população, mas porque a pressão económica sobre as farmácias, os lóbis e a própria arquitetura do Serviço Nacional de Saúde não permitem ou não querem que assim seja.

Os farmacêuticos são, a meu ver, um dos maiores desperdícios do Serviço Nacional de Saúde, o mesmo que financia todo o sector do medicamento, mas que também se financia com a venda dos mesmos, com a aplicação de uma nova taxa a todas as farmácias.

O preço da embalagem não pode continuar a ser o único motor válido para o medicamento, claro que é importante, mas há outras conversas que podem e devem fazer-se. A medicação que se toma é mesmo um valor acrescido para o doente? Porque continua a aumentar o número de caixas vendidas? E o conteúdo dessas caixas é mesmo eficaz?

Mariana Rolinho

(futura farmacêutica)

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