Começam as queixas, inicialmente pouco significativas, mas facilmente exacerbadas a cada dia que passa. Tal como em todas as relações, é preciso alguma elasticidade, algumas cedências… Tudo vai bem enquanto o “encaixe” é perfeito. O pior é quando a harmonia entre articulações se quebra

No nosso corpo, na zona da anca, existe uma articulação esférica composta por dois elementos, com um encaixe perfeito: a cabeça do fémur e a cavidade acetabular. É uma espécie de rolamento, tão comum nos nossos carros, como em diversas máquinas que usamos diariamente. Observa-se na normalidade dos movimentos, do dia-a-dia, uma grande amplitude e estabilidade. E enquanto o encaixe existe entre as partes, a engrenagem funciona praticamente na perfeição.

Mas na anca, tal como nas relações, ao longo dos tempos, as pessoas vão mudando, e nessa mudança pode, ou não, ocorrer num equilíbrio relacional, em que as duas partes se vão adaptando ou simplesmente deixa de haver sintonia entre elas.

É o que acontece muitas vezes na nossa anca, surgem patologias associadas a um desajuste entre estas duas estruturas, ou a cabeça do fémur perde a sua esfericidade e fica “grande de mais” para entrar “na sua casa” ou então é a “casa” (o acetábulo) que aprisiona demasiado a cabeça do fémur. Claramente surge um conflito nesta união, à partida perfeita, em que a harmonia dá lugar ao desajuste, sentida em uma, ou nas duas, partes envolvidas.

Conflito tipo Cam:

Quando um dos elementos da anca, falamos neste caso concreto, da cabeça do fémur, aumenta de volume, surge um problema de espaço levando a um conflito entre as duas estruturas. A cartilagem e o labrum sofrem, ressentindo-se a articulação, podendo mesmo originar a sua destruição. À semelhança do que acontece entre duas pessoas, quando surgem incompatibilidades, partilhar o mesmo espaço torna-se incomportável, tudo parece incomodar, os desentendimentos começam a ser cada vez mais recorrentes. Quando as relações chegam a este ponto há a necessidade de algo ser feito.

Conflito tipo Pincer:

Ao contrário do que acontece no tipo Cam, esta deformidade encontra-se mais no sexo feminino. É muito comum ouvirmos falar deste tipo de problemas nas relações: a possessão, onde deixa de haver respeito pela liberdade do outro. É o que acontece com o acetábulo, quando se torna demasiado profundo, ou com um rebordo demasiado proeminente, prende os movimentos da cabeça do fémur, restringindo a naturalidade dos movimentos desta articulação. Resultado: quando uma das partes sente que o seu espaço não é respeitado, surgem os momentos de desentendimento na tentativa de ganhar o seu lugar e liberdade. Na prática, se nada for feito, destrói-se a relação harmoniosa, entenda-se, a articulação.

Conflito tipo misto:

Sabemos que nos casais há desentendimentos em que o desajuste tem origem nas duas partes, há uma partilha de responsabilidades e de culpa. Sente-se uma falta de espaço, a relação não flui, os desentendimentos são constantes e por isso esta relação deixa de funcionar com naturalidade. Isto acontece também com a nossa anca, que para funcionar como uma engrenagem perfeita, tanto o acetábulo, como a cabeça do fémur têm que estar em equilíbrio e encaixe. Este tipo de conflito é encontrado em 50 a 75% os pacientes, onde há simultaneamente, uma alteração tanto acetábulo como na cabeça do fémur.

O papel do médico ortopedista

O papel da intervenção torna-se fundamental, uma atuação atempada através de uma “terapia de casal”, que no mundo ósseo, pelas mãos do médico ortopedista, se resolve através da correção do defeito, para que o “rolamento” se torne esférico, outra vez, e deste modo, o encaixe entre os dois elementos volte a funcionar.

Referimo-nos de igual modo ao caso da possessão, onde é fundamental o terapeuta intervir, libertando o excesso de osso que aprisiona a cabeça do fémur, melhorando a mobilidade, e muitas vezes, ainda a tempo de salvar a articulação.

Convém salientar que quando estamos perante um cenário sem dor e sem limitação na articulação da anca, o tratamento cirúrgico pode não se justificar. Este apenas tem como objetivo evitar a progressão das alterações na articulação da anca e desenvolvimento da artrose, com base num cenário agravado pela dor e comprometimento dos movimentos da articulação da anca.

Em casos limite, já não é possível a terapia, nestes casos resta ao terapeuta sentenciar o fim da relação, para que não surjam mais conflitos, isto é a dor e limitação da função / mobilidade. Nestes casos o ortopedista cria uma nova articulação, um novo “rolamento” artificial, nunca tão perfeito como o original, mas que visa garantir ausência de sintomas.

Pedro Marques

(médico ortopedista)

Deixar um Comentário