Acordar a meio da cirurgia ou ter memórias da intervenção é coisa do passado. Hoje, a monitorização anestésica permite-nos dormir, sonhar e entrar em modo “pausa”, sem recordações sobre o que aconteceu à nossa volta. Mas, casos há, em que o acordar da anestesia acaba por ser um processo confuso e de delírio. Há esse risco sim, para alguns

 

Vou ter memórias da cirurgia apesar de anestesiado(a)? 

No passado, foram vários os relatos de doentes que tiveram memórias das suas cirurgias e que descreviam conversas que tinham ouvido enquanto estavam sob o efeito da anestesia geral. Este fenómeno do doente se conseguir lembrar de factos corridos enquanto esteve anestesiado chama-se awareness ou consciência durante a anestesia geral. Felizmente, hoje em dia, a awareness é muito improvável acontecer porque as técnicas anestésicas, fármacos e aparelhos de monitorização evoluíram imenso nestes últimos anos. Por exemplo, hoje em dia, é possível monitorizar a profundidade anestésica numa anestesia geral ou sedação, permitindo ao médico anestesiologista dosear de uma forma mais correta e fidedigna os fármacos anestésicos, evitando, por um lado, efeitos adversos de sobredosagem, assim como evitar subdosagens e o acordar/awareness do doente a meio da cirurgia.

Se um dos seus medos era acordar a meio da cirurgia ou ter memórias desta, não se preocupe: isso é muito raro!

No entanto, é importante realçar que durante a anestesia geral o doente pode sonhar e a memória desses sonhos parecerem tão reais que dão a sensação de ter estado de facto acordado… Grande parte dos doentes que têm sonhos durante a anestesia, sonham com o trabalho ou com outras atividades de rotina… e quase sempre quando acordam da anestesia, não acreditam que já foram operados!

A anestesia pode afetar a minha memória no futuro?

“Depois de ter sido operada, a minha memória nunca mais foi a mesma” – ouve-se dizer. Efetivamente algumas pessoas que já foram submetidas a anestesia referem que a sua “memória já não é o que era”. Mas será que isto se deve à anestesia ou à própria fisiologia do envelhecimento?

Cada vez se anestesia mais doentes e cada vez mais um só doente é submetido a múltiplas anestesias, sem quaisquer alterações de memória.

Não são claros os efeitos que a anestesia poderá ter na memória e muitos têm sido os trabalhos de investigação clínicos, e mesmo em animais, para se tentar perceber o seu efeito, mas os resultados são muito divergentes…

Em conclusão, não há qualquer evidência de que a anestesia possa ter efeitos negativos na memória.

E nos doentes mais frágeis, a anestesia poderá agravar quadros de disfunção cognitiva?

Apesar de a anestesia não parecer ter uma influência clara na função cognitiva da memória, o mesmo não se pode dizer, quanto à sua influência no aparecimento de delirium pós- operatório.

O delirium pós-operatório é um quadro de disfunção cognitiva pós-operatória muito específico e que cursa com alterações de comportamento e agitação a seguir a uma cirurgia/anestesia. É mais frequente em doentes de risco, podendo ocorrer nas 24 a 72 horas pós-operatórias, sendo uma situação transitória e reversível e ocorrendo com a mesma incidência, tanto com a anestesia geral ou com a anestesia loco-regional. Na maior parte das vezes, desaparece ao fim dos primeiros meses. O risco de aparecimento de delirium pós- operatório é maior quando estão presentes fatores de risco como: idade avançada, disfunção cognitiva demência ou depressão prévia, doença vascular ou AVC, alcoolismo…

O médico anestesiologista tem um papel importantíssimo na redução do aparecimento deste quadro: na avaliação pré-anestésica identifica fatores de risco e, se presentes, tomará todas as atitudes para evitar o seu aparecimento, ou no caso de surgir, iniciará o seu tratamento adequado, garantindo sempre a sua segurança perioperatória.

Além das medidas de prevenção clínicas, também devem ser tomados alguns cuidados não farmacológicos nos doentes de risco, nomeadamente: proporcionar ao doente um ambiente calmo e sereno, ter visitas regulares de familiares/cuidadores (que são o ponto de referência do doente), usar logo de imediato e quando possível as suas prótese auditivas e visuais, retirar precocemente (e quando possível) cateteres e sondas, evitar a imobilização, promover o sono nas horas corretas, hidratação e nutrição adequadas.

 

Ana Bernardino

(Médica Anestesiologista)

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